O livro “Tecnofeudalismo: O que matou o capitalismo”, de Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia (Editora Planeta do Brasil, 2025, tradução Erika Nogueira Vieira), apresenta uma tese provocadora e instigante: os pilares que sustentavam o capitalismo foram substituídos. Os mercados cederam lugar às plataformas digitais – verdadeiros feudos das grandes corporações tecnológicas – e o lucro foi suplantado pela pura extração de rendas. As dinâmicas tradicionais do capitalismo não governam mais a economia e, segundo o autor, o que destruiu o sistema foi o próprio capital, impulsionado pelas aceleradas mudanças tecnológicas das últimas duas décadas.
À primeira vista, mesmo considerando uma afinidade ideológica com o autor e seu posicionamento crítico ao poder nocivo e descontrolado das big techs, a impressão inicial é que o controle do Estado por grandes proprietários de meios de produção – que continuam a acumular riqueza a partir da apropriação da força de trabalho e da mais-valia – não representa exatamente o fim do capitalismo. Pelo contrário, parece reafirmar sua própria essência. O que vemos é uma mudança no perfil dos grandes proprietários que mantêm esse controle: os donos das big techs. Pouco importa se o fazem direta ou indiretamente.
Todavia, a leitura atenta e aprofundada do livro conduz, senão ao convencimento definitivo de que o capitalismo foi superado pelo “tecnofeudalismo”, ao menos à necessidade de considerar seriamente essa hipótese e acompanhar os desdobramentos dos fatos e das análises que a proposta de Varoufakis instiga.
Com efeito, ao analisar as medidas adotadas pelos Estados e seus bancos centrais durante a crise global de 2008 – o que o autor descreve como a socialização do aporte financeiro aos bancos privados e a imposição de severa austeridade à população – Varoufakis demonstra a consequência (não projetada, não imaginada) dessa operação: a substituição do lucro pela renda. Em diversos momentos, grandes corporações tecnológicas não apresentaram lucros, mas suas ações mantiveram-se em alta. Aliado a isso, o poder avassalador das big techs em ditar formas de sociabilidade global e moldar comportamentos conduziu a uma transformação na essência do modo de produção.
Progressivamente, os modelos de negócio passaram a depender do que o autor denomina “capital das nuvens”. Empresas de todos os setores tornaram-se reféns do acesso e da inserção em grandes plataformas de comércio eletrônico, sem as quais seus negócios tornam-se invisíveis e inviáveis. Surgem aqui os novos vassalos, totalmente dependentes dos senhores feudais da tecnologia. E os servos? São todas as pessoas – “quase toda a humanidade” – que, “gratuitamente” e voluntariamente, fornecem dados e informações por meio de suas pegadas digitais, formando um big data que constitui o principal capital das plataformas. É desse “trabalho invisível” que as big techs extraem sua principal fonte de renda: “Os empregados das big techs recolhem menos de 1% do faturamento de suas empresas. A razão disso é que o trabalho remunerado realiza apenas uma fração do trabalho que sustenta as big techs. A maior parte do trabalho é executada por bilhões de pessoas de graça.” São os “servos das nuvens”.
Este é um ponto central: “O capital-nuvem pode reproduzir a si mesmo de modos que não envolvem trabalho assalariado. Como? Comandando quase toda a humanidade a contribuir com sua reprodução – de graça!”.
No tecnofeudalismo, as instituições do capitalismo continuam a existir, mas reformatadas em seu modelo de funcionamento. Os trabalhadores explorados – denominados “proletários das nuvens” – persistem, cada vez mais precarizados. As empresas continuam a extrair mais-valia de seus trabalhadores, mas atuam como vassalas dos senhores feudais tecnológicos. Trabalhadores informais e não assalariados – como motoristas, entregadores, diaristas e donos de pequenos negócios – dependem diretamente das plataformas que, em troca de acesso, capturam parte significativa de seus rendimentos.
Enfim, “a atividade capitalista está crescendo dentro do mesmo processo de acúmulo energético de capital que degrada o lucro capitalista e gradualmente substitui os mercados capitalistas por feudos das nuvens. Resumindo, o capitalismo está esmorecendo como resultado de uma atividade capitalista próspera. Foi por meio da atividade capitalista que o tecnofeudalismo nasceu e está agora arrebatando o poder.”
Como se percebe, o fim do capitalismo, conforme proposto por Varoufakis, não significou sua substituição por um modo de produção socialmente justo ou capaz de promover o desenvolvimento pleno das potencialidades humanas. O tecnofeudalismo, como descrito, revela-se ainda mais brutal do que o capitalismo. O indivíduo liberal dá lugar a um sujeito fragmentado, incapaz de ser senhor de si, pois o capital-nuvem dos senhores do tecnofeudalismo o esfacela em dados, moldando sua identidade por meio de escolhas digitais manipuladas por algoritmos.