ARACAJU/SE, 2 de dezembro de 2024 , 6:04:05

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Toco apagado não faz fumaça

Mundo doido. Gente endoidecida campeando por aí. Pessoazinhas de passo torto e de quengo endiabrado. Fartura delas. Maldade de montão. Muita, muita, muita. E de tanta maldade desembestada, o mundo chega enjoa. Nação trevosa a do sertão do Acari. Família única no passado, de gente vinda corrida da seca, no dizer lá dessa gente, mas fugida da justiça, no dizer de quem por derradeiro chegou naquele sertão de pouco dar e de menos sobrar. Muito sangue correu no Acari, tempos idos.

Janjão Fulgêncio. Nome respeitado nas armas e no poder do dinheiro. Único rico de verdade, no Acari. Rico, porque ali basta uns teres e haveres para tornar um cabra rico e poderoso. Porque rico mesmo é Deus, que dá e toma, a depender do freguês e da circunstância, que rodeia o vivente suplicante, como cobra enroscada em pé de pau.

De família única, o sertão foi alentado por outras pessoas, vindas de lugares distantes e diversos. Tudo gente esquentada. De falação e de briga. Assim cresceu o Acari. Povoadozinho sem prestança. Casa aqui, casa acolá. Arruado por depois formado. Um casamento, uma amigação e a meninada crescendo de gosto dar. Pessoas da cidade, do Vale Encantado, nunca que se deram bem por ali. Gente trancada, arisca. Comunidade de caramujos. Voltada para si mesma, lá dentro socada. Sim, o Acari é um baixio, para além do riacho do Sapo, para aquém da serra do Achado. Lugar escaldante no mais dos dias.

Janjão já se deita nos seus setenta e tantos anos. Deve de beirar os oitenta. Taludo. Alto e forte como uma baraúna. Voz única de mansidão no Acari, mas de duras decisões. Único ser de curta falação. De “sim, sim” e “não, não”.

Neta de Janjão, Belinha, flor abrindo-se no frescor da madrugada, beijada pelo orvalho, única friagem do baixio, dá de cair no bico de Manuelão de Pedro Brotas, um desinfeliz que onde cair morte não tem. Nem haveria de ter. Sem proveito. Pai metido em brigas nas Alagoas, morto como um cachorro gué do rabo fino, sem dono, corpo jogado em desamparada pirambeira. Sujeitinho sem eira nem beira, esse tal Manuelão, um varapau de metro e tanto. “Mulher não namora com formiga, porque não sabe qual é o macho”, diz Sá Marcolina, de prosa a não merecer atenção de gente séria. Velha bocuda e desbocada. Desculpem os leitores por essa sua fala tão sem propósito.

Belinha é chamada aos arreios pelo pai, Virgilinho de Janjão. Confessa que se deixou beijar na palma da mão por Manuelão, ao caminho da fonte. “Nada mais, meu pai. Eu juro”, ela diz. “Ele não me buliu”, complementa. Virgilinho não se contém. Ajusta Belinha no cinturão. Uma lástima! Vincos nas costas ficaram. Dona Aparecidinha, a mãe, socorre a filha. “Para que tanto desaprumo?”, indaga ao marido. Belinha, dura na queda, não verteu uma lágrima. Isso indignou ainda mais o pai. Ela teve a quem sair. Era neta de Janjão Fulgêncio. Sujeito de bofes em avantajada queimação.

Transcorreu menos de uma hora, eis Virgilinho à cata do beijador de mão. Dá daqui, dá dacolá ei-lo encontrado em seu quê-fazer, na bem montada forja de ferreiro, do tio Zé Antunes, batendo todo tipo de instrumento para roça e pasto. Com o pai de Belinha, seus dois irmãos. Achegaram-se soltando fogo pelas ventas. “É tu, então, o desassossegador de moça donzela, malfeitor a ter que ir render penitência junto ao Pai Eterno?”, perguntou Virgilinho, mão direita no cabo do revólver.

Suado pela aproximação com o fogo da forja, faces avermelhadas, Manuelão não se fez de rogado, nem triscou. Disse: “’Seu’ Virgilinho, eu sou homem e filho de homem, pobre que nem Jó, o do livro santo, mas tenho respeito e consideração por todo mundo. Vagabundo sou não, deveras. Se seu vexame diz respeito a Belinha, não se perturbe. Nada fiz que desmereça distinta moça, nem que me tenha de envergonhar ou correr mundo, como judeu descarreirado. Não estou eu aqui? Como pai, o senhor tem direitos. Menos o de me afrontar. Criminoso não sou”.

Um dos filhos de Virgilinho fez menção de puxar da cintura uma faca peixeira. Vontade de sangrar tão desaforado batedor de enxadas. À porta da oficina assomou Zé Antunes, rifle papo-amarelo à mão, engatilhado. “’Seu’ Virgilinho, vosmecê e seus filhos sempre foram bem-vindos a esta oficina. Serviço muito lhe prestei. Mas, preste atenção: toco apagado não faz fumaça. Matar o menino vai servir de quê? Faça isso não. Do contrário, muita matança se verá no Acari”. Nada mais falou, nem precisou. De chofre, riscou no alazão de costume o velho Janjão Fulgêncio. Apeou. Todos quedaram diante do único homem com autoridade no povoado.

Debaixo de frondosa maria-preta, bancos rústicos. “Sentem aqui, vocês todos”, sentenciou Janjão. Ninguém discutiu. “Então, temos uma situação muito séria a ser resolvida. Eu ouvi suas palavras, ‘seu’ Zé Antunes. Chega de mortes no Acari. Deveras, toco apagado não faz fumaça. Minha neta não perdeu a mimosa flor do entre pernas, mas há de ficar falada na boca desse povaréu imundo. Só há uma solução, que não me agrada de todo, mas é a única solução. Casamento”.

E foi assim que o varapau Manuelão desposou a mimosa flor chamada Belinha, no sertão do Acari. Para que mortes? Toco apagado não faz fumaça. Melhor viver.