ARACAJU/SE, 27 de outubro de 2025 , 21:17:36

Uberização do trabalho: liberdade ou nova servidão?

Maurício Gentil

O filósofo francês marxista Louis Althusser, em sua obra “Aparelhos ideológicos de Estado”, demonstra com clareza como a ideologia se revela como realidade estrutural concreta na qual os seres humanos são inseridos e não exatamente como visão de mundo que se consolida a partir de escolhas subjetivas.

Assim, na sociedade capitalista, o indivíduo já se constitui – e constitui sua subjetividade – dentro das manifestações sociais estruturais que favorecem a divisão de classes e a reprodução econômica do modelo. A adesão do indivíduo a esse conjunto de ideias, garantidoras da manutenção e reprodução capitalista da acumulação de riqueza, se faz de modo inconsciente, moldada pelos aparelhos ideológicos do Estado.

Pois bem, nas últimas décadas, assistimos à consolidação de um discurso sedutor: a promessa de liberdade, autonomia e realização pessoal por meio da “nova economia”. Plataformas digitais como Uber, iFood, Rappi e tantas outras não apenas transformaram setores inteiros da economia, mas também reconfiguraram a própria noção de trabalho. O que se vende como inovação, no entanto, muitas vezes esconde a ressignificação de velhas formas de exploração.

A chamada “uberização” do trabalho não se resume à adoção de aplicativos ou ao uso de tecnologias digitais. Ela representa uma profunda mutação nas relações laborais, em que o vínculo formal é substituído por contratos intermitentes, por “parcerias” desiguais e pela figura do “empreendedor de si mesmo”. O motorista de aplicativo, o entregador de bicicleta, o profissional de freelas on demand são apresentados como autônomos, mas vivem sob intensa vigilância algorítmica, metas inatingíveis, ausência de direitos básicos e uma competição perversa que desumaniza.

Essa lógica tem raízes ideológicas profundas, e, com Althusser, conseguimos compreender o porquê da adesão acrítica e mesmo entusiasmada por grande parte desses trabalhadores. A precarização é camuflada por uma narrativa de liberdade empreendedora. Os trabalhadores são convencidos – ou coagidos – a acreditar que são donos do próprio destino, senhores de sua jornada, quando, na prática, estão submetidos a uma instabilidade crônica e a um modelo de negócios que transfere riscos para os mais vulneráveis. Trata-se de um novo tipo de alienação, em que o controle não se dá apenas por ordens diretas, mas por métricas, ranqueamentos e estímulos gamificados que mascaram a exploração.

A ideologia neoliberal, que há tempos busca desmontar as estruturas de proteção social construídas ao longo do século XX, tem encontrado na uberização uma forma eficiente de desmobilizar os trabalhadores. Afinal, como organizar coletivamente sujeitos que acreditam ser seus próprios patrões? Como reivindicar direitos se o próprio discurso dominante nega que exista uma relação de trabalho? Como atuar coletivamente se a dominação algorítmica impõe competição predatória entre os “empreendedores”?

A romantização do empreendedorismo individual, tão presente em redes sociais e discursos motivacionais, contribui para esse processo. Não se trata de negar a importância da inovação tecnológica ou das transformações do mundo contemporâneo, mas de recusar a naturalização de um modelo que concentra lucros e distribui riscos, que promove eficiência às custas da dignidade humana.

É fundamental reabrir o debate público sobre o futuro do trabalho, reafirmando o valor da dignidade laboral frente às promessas ilusórias de autonomia e sucesso individual propagadas por plataformas que lucram com a precarização, incluindo a necessidade de regulação dessas plataformas, o fortalecimento de redes de proteção social e a valorização de formas de organização coletiva. Do contrário, a nova economia continuará a produzir velhas injustiças – agora com um design moderno, linguagem sedutora e algoritmos a serviço do capital, ou, com Yanis Varoufakis, a serviço dos senhores feudais do tecnofeudalismo, as big techs.