ARACAJU/SE, 24 de novembro de 2024 , 1:54:34

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Um filósofo vê a justiça

Durante uma de suas famosas aulas-espetáculo, Ariano Suassuna criticou a forma como as universidades brasileiras não priorizam a cultura e os pensadores nacionais. Para ilustrar seu ponto, ele compartilhou uma experiência que teve em outra palestra. Naquela ocasião, Suassuna perguntou à plateia quem conhecia o filósofo alemão Kant. Todos os presentes levantaram a mão, demonstrando familiaridade. Em contraste, ao perguntar se alguém conhecia Matias Aires, que viveu na mesma época que Kant, apenas uma pessoa no auditório levantou a mão. Quando questionado sobre o que sabia sobre Aires, o indivíduo respondeu: “Nada. É que eu moro na rua que tem o nome dele.” 

Essa anedota revela o primeiro – e esquecido – filósofo brasileiro que escreveu um dos mais brilhantes tratados sobre a vaidade já concebidos pelo espírito humano, uma obra em diálogo com o livro bíblico de Eclesiastes.

Matias Aires Ramos da Silva Eça, nasceu em 1705, em São Paulo, e faleceu em 1763, em Lisboa. Ele é uma figura notável na história do pensamento luso-brasileiro. Sua trajetória de vida é marcada por uma época de grandes transformações tanto no Brasil quanto na Europa. 

Aires foi enviado a Lisboa aos 11 anos de idade, depois de haver frequentado o Colégio Jesuíta de São Paulo. Ingressou na Universidade de Coimbra, onde iniciou seus estudos em Direito. A sua educação foi complementada em Baiona, na Galícia, e alcançou seu ápice na Sorbonne, em Paris.

Sua formação sofisticada foi crucial para o desenvolvimento de seu pensamento crítico e cético, especialmente em relação aos dogmas estabelecidos e ao otimismo iluminista que começava a ganhar forma naquela época. Essas influências se refletem em sua obra, na qual explora a complexidade das interações humanas e a psicologia do comportamento, com um foco particular na vaidade.

Retornando a Lisboa em 1733, Matias Aires assumiu a posição de Provedor da Casa da Moeda, sucedendo ao seu pai. Este cargo não apenas lhe proporcionou uma posição de destaque na sociedade portuguesa como também lhe ofereceu uma perspectiva única sobre as engrenagens do poder e da riqueza, temas que mais tarde permearam suas reflexões filosóficas. 

Em 1752, Aires publicou “Reflexões sobre a Vaidade dos Homens”. Este tratado é uma análise da natureza humana e da sociedade, explorando como a vaidade se entrelaça com quase todos os aspectos da existência. 

O livro permite que sejam ouvidas muitas influências. Montaigne e seus Ensaios. Pascal e seus Pensamentos. La Bruyère e La Rochefocault. Sobretudo Antônio Vieira e suas construções por contraste. A obra é uma exposição barroca na qual se revela que Aires contemplava a vaidade não apenas como uma fraqueza pessoal, um pecado católico, mas como um elemento central na dinâmica social e cultural. Ele afirmava que a vaidade não apenas edifica, mas também destrói; ela é a criadora de ilusões e a arquiteta da ruína. Essa visão dualista da vaidade como tanto construtiva quanto destrutiva é pertinente hoje, quando a busca por validação social pode levar tanto ao sucesso quanto ao isolamento e à ansiedade.

A visão de Aires de que a vaidade é uma força motriz fundamental, que os homens mais vaidosos são os mais apropriados para a sociedade, pode ser vista no modo como figuras públicas usam sua imagem para influenciar e liderar. Esta observação sugere que a vaidade, quando canalizada adequadamente, pode ser uma poderosa alavanca para mudanças positivas.

A capacidade de Aires para desvendar a complexidade da vaidade e suas múltiplas facetas torna sua obra uma ferramenta valiosa para entender as interações humanas na era digital. Cada homem traz em si o teatro de sua própria vaidade, onde ele é simultaneamente o ator e o espectador, escreveu ele, destacando a maneira performática como as pessoas apresentam suas vidas para apreciação social.

Seu tratado não somente aborda as falhas morais humanas em geral, mas também se aprofunda nas práticas dos magistrados (e, se pode aditar, advogados, promotores, delegados etc.). Ele afirma como a vaidade pode influenciar negativamente a aplicação da lei. 

A partir do fragmento 131, ele examina com perspicácia como a vaidade permeia a prática judicial, argumentando que muitas vezes a justiça é subvertida por um desejo de reconhecimento e prestígio pessoal. Ele critica os magistrados que adotam uma postura severa e implacável, mais preocupados em serem vistos como justos do que em praticar a justiça de fato. Ele se espanta com quantas injustiças não produz o desejo, ou a vaidade de adquirir aclamação. Aires aponta para uma realidade judicial em que a aparência de justiça é mais valorizada do que a verdadeira equidade, onde a ética é eclipsada pela busca de status e admiração. “A ciência de fazer justiça é donde a vaidade é mais perniciosa.”

Ao discutir como a vaidade pode distorcer o julgamento dos magistrados, Aires reflete sobre a natureza inconstante da justiça, que muitas vezes é moldada não pelas leis objetivas, mas pelas “leis da vaidade”. Ele observa que os praticantes do direito podem ser guiados mais por convenções sociais e interesses pessoais do que por princípios jurídicos rigorosos. “A vaidade também tem regra e doutores” ele escreve, sugerindo que as práticas judiciais estão enraizadas em uma cultura onde a aparência e a percepção pública prevalecem sobre a justiça imparcial.

Aires destaca os perigos da vaidade na aplicação da justiça, no que diz respeito à manipulação e corrupção das práticas judiciais, mascaradas de virtude. O desejo de parecer justo pode levar a decisões judiciais que, embora populares, fundamentam-se na injustiça e na parcialidade. Ele alerta para o risco de os juízes serem seduzidos pela vaidade, comprometendo assim sua habilidade de julgar com equidade e integridade. “Quem é muito sensível à vaidade do nome e à vaidade da opinião, comumente é insensível à realidade da coisa.”

Aires vai além, discutindo o julgamento como uma performance muitas vezes influenciada pela vaidade pessoal dos magistrados, que buscam afirmar sua autoridade através de uma gravidade ostensiva. “Revista-se embora o soberbo magistrado de um semblante rugoso, implacável,” ele descreve, criticando a postura artificial adotada por alguns na tentativa de ganhar respeito e admiração. Este comportamento, segundo Aires, pode levar a uma aplicação da justiça que é desprovida de verdadeira moralidade e empatia, restrita a manter uma imagem de rigor e seriedade.

Com acidez, Aires pondera: “A fortuna, o tempo, a ocasião, o humor, a hora têm mais parte nas decisões, do que a lei, a verdade, e a justiça; esta, ou a sua imagem simbólica, em uma mão tem a balança, e na outra a espada: mas [o] que pesa na balança?” E mais adiante responde: “A espada depende da justeza da balança e assim vem a depender de um instrumento inútil: sim, depende de uma balança certa, para saber o como, o quando, e em que caso há de ferir; mas, para nosso mal, (…) não porque deixe de haver homens justos, a justiça verdadeiramente não se pode pesar; é um ato de discurso e este, em cada homem, é sempre incerto, vago e vacilante.”

Matias Aires oferece uma crítica da prática da justiça, relevante em um contexto em que a ética judicial é desafiada pela busca de aplauso. Suas reflexões convidam a questionar as verdadeiras motivações por trás das ações dos magistrados (e demais atores jurídicos), sugerindo que a verdadeira justiça exige um compromisso constante com a integridade, além da vigilância contra as influências corruptoras da vaidade. Ao se mergulhar nas “Reflexões sobre a Vaidade dos Homens”, há um convite a considerar como a integridade pessoal e a ética profissional são fundamentais para a prática da justiça num sistema onde as aparências muitas vezes têm mais peso do que a realidade.

A abordagem de Aires prenuncia muitas ideias presentes na psicologia contemporânea sobre o self e a identidade. Sua obra oferece uma visão de como os indivíduos constroem suas identidades através de uma mistura de autoavaliação e percepção externa, um tema que ressoa na era da cultura da imagem e do narcisismo.