A figura do juiz é associada à imparcialidade, à razão e à segurança jurídica. Também à serenidade e sobriedade. Por fim, mas não menos importante, ao status e prestígio, pois julgar em nome do Estado é tarefa atribuída a poucos, cuidadosamente selecionados. No entanto, quando colocados diante da complexidade da existência, os magistrados podem se deparar com os limites práticos de sua própria função e a fragilidade da segurança que parecem ostentar. São humanos, não máquinas.
O tema do juiz e suas crises existenciais é explorado em Divórcio em Buda, romance de Sándor Márai, publicado em 1935. Convém evitar “spoilers”, mas algo do texto pode ser dito sem prejudicar o interesse pela obra.
Kristóf Kömives, na Hungria do entreguerras, é um juiz respeitado, mais um em sete sucessivas gerações de magistrados, conhecidos por sua postura repleta de recato e temperança. Tem 38 anos, é casado, pai de dois filhos e católico. Ele encarna a rigidez moral e a tradição da sociedade burguesa húngara. Sua história é marcada por um passado de abandono materno (ela fugiu com um engenheiro e, pouco depois, morreu) e de pouca afetividade (seu pai o mandou para ser educado por padres, separando-o dos irmãos).
Após anos como juiz criminal, Kömives muda de jurisdição e se vê diante do divórcio de um colega dos bancos escolares, que se casou com uma moça com quem ele próprio tivera um flerte (ou menos que isso), pouco antes de noivar.
Kömives é um juiz que representa a tradição do magistrado que acredita na justiça como um campo de combate com regras claras, os deveres: “A vida são deveres, que devem ser cumpridos; naturalmente deveres pesados e complexos, que algumas vezes devem ser suportados com sacrifício.”
Entretanto, ao longo do enredo (que se passa em um único dia), Kömives é forçado a reconhecer que a vida escapa de qualquer esquematização. Viver de decidir invade a personalidade, conforma a subjetividade e cria os seus próprios dramas para o julgador. Quem bate o martelo é julgado também. Por isso, precisa moldar para si uma figura, uma persona. Construir uma imagem, traçar uma rota profissional e social.
Kömives prevê para si uma vida organizada para ir longe em suas pretensões pessoais: “A partir do momento em que se sentou na cadeira de juiz, poderia ter desenhado com uma parábola ascendente o gráfico de sua carreira: não precisaria fazer mais do que ficar em seu lugar com saúde e honestidade, mesmo sem aptidões especiais; não cometer grandes erros, obedecer, ordenar e observar a etiqueta oficial.” Aceita, portanto, a condição de burocrata: para progredir, não é necessário ser especial, apenas disciplinado.
No início, Kömives crê que essa disciplina férrea não o afeta (ou que não deveria afetá-lo): “Mantinha as dúvidas fechadas em seu próprio mundo, o mundo da família e da carreira.”
Todavia, ao longo da narrativa, em seu trabalho, esse homem de toga é obrigado a confrontar sua história pessoal e a reavaliar suas crenças, algumas das quais rigorosíssimas e fundantes de seu caráter: “Kömives acreditava no caráter sacro do casamento. Essa convicção era uma das suas leis internas.”
Exatamente por isso, julgar divórcios gerava nele uma irritação: “A lei divina era perfeita, o homem, que não conseguia suportá-la, era imperfeito e frágil, era assim que pensava (…). As pessoas não conseguiam suportar o peso da família, do casamento? Sim, segundo todos os indícios (…) o edifício da família estava desabando, as pessoas fugiam do lar decrépito e gelado, de todos os cantos surgiam falsos xamãs, profetas de modas detestáveis, que pregavam uma ‘união camarada’, um ‘casamento experimental’ e discursavam sobre a ‘falência do casamento’.”
Por esse motivo, Kömives encarava seu trabalho com disciplina e resignação, mas não com alegria. Decidir era um fardo: “Depois de alguns anos de experiência com divórcios, sentia que entre as diversas competências dos juízes a sua era a mais pesada; devia unir e separar com mãos profanas o que Deus havia unido e somente Ele podia separar.”
Kömives enfrenta sua profissão como um campo onde a razão impera, onde as emoções devem ser postas de lado e onde a justiça se traduz na aplicação precisa da lei, não porque era infalível, mas era o que se dispunha: “A engrenagem da justiça, essa máquina grande e complicada, com certeza era imperfeita, muitas vezes rangia, ficava enferrujada e empoeirada: mas ninguém conseguia propor nada melhor, ninguém tinha inventado nada mais perfeito, era imprescindível resignar-se a esse fato.”
Ao analisar o divórcio desse casal conhecido, ele se vê emocionalmente envolvido e confrontado com a impossibilidade de definir legalmente o que é justo em um casamento falido. “Tinha de julgar com rigor, à letra, dentro do espírito da lei. Mas, de vez em quando, ao mirar o turbilhão, o turbilhão do tempo, sentia que a lei se defasara, a lei não dava conta de prever essa decomposição, esse vórtice que varria e mandava para o espaço tudo que fora projetado para ser seu fundamento.”
Se Kömives tem suas certezas abaladas, isso ocorre porque percebe que a justiça formal não tem resposta para as questões fundamentais da existência. O amor é um tema que escapa ao juridiquês, à sistematização do direito e de suas crenças pessoais. Sua concepção de justiça se mostra insuficiente quando se depara com um problema que não pode ser resolvido nos autos. O que significa julgar um casamento? Quem fora dele pode dizer se um amor acabou? É possível intuir que a lei pode decretar o fim de uma união, mas não pode explicar por que duas pessoas se afastam.
O juiz percebe que não está acima da condição humana: ele também sente, também é vulnerável e se questiona sobre o sentido de sua função e dos conceitos com os quais trabalha: “Na prática, o que era a ‘verdade’ para o juiz? Havia o mundo, com seus processos, seus assassinos, as partes interessadas dispostas a jurar, com seus ódios e ânsias; havia a lei; e, depois havia a estrutura, com seus ritos milimetricamente determinados, seu código de procedimentos, sua ordem, e o tom de voz com que o ofendido encarava o agressor na frente do juiz; e, finalmente, havia o juiz para destilar algo dessa matéria diversa, crua e morta, que, segundo a equação química da lei, correspondesse à ‘verdade’…”
Adiante, Kömives arremata: “A verdade era antes de tudo comedimento.” Seria mesmo?
Em certo episódio, em um convescote na casa de colegas de foro, esse seu aparente equilíbrio foi avaliado silenciosamente por um colega mais experiente. “Mas, por detrás do véu de fumaça do charuto, o velho magistrado olhava e ponderava o jovem juiz de maneira reflexiva. ‘É um pouco formalista demais’, pensou. ‘É a correção personificada. Nunca se excede no vinho, nunca pronuncia algo que não seja pertinente.’ O juiz estava próximo dos setenta, já tinha visto de tudo, já vira pessoas mais nuas do que apenas sem roupa, acreditava conhecê-las a fundo. Observava essa correção de Kristóf com intranquilidade.” O antigo julgador, que era protestante, conclui: “Talvez seja o católico que há nele.” Quem será capaz de saber, com precisão e antecedência, os critérios pelos quais será julgado?
O que sucede além disso, o livro dirá. Mas, pode-se falar aqui, já transbordando a obra, que ninguém, por mais disciplinado que seja, por mais asceta que se faça, livra-se do crivo da crítica (e da autocrítica). Uma vida estoica e profissionalmente exitosa, por igual, não garante felicidade. Por meio de Kristóf Kömives, Sándor Márai apresenta uma interessante reflexão sobre o ofício de julgar e suas implicações. Não está claro, porém, que tenha falado, apenas e tão somente, de um imaginário juiz húngaro de noventa anos atrás. Nessa moldura, provavelmente, cabe muito mais gente.