Em ano de fim de mandatos e eleições municipais, saber como prefeitos prestam contas vai além de mera curiosidade: compõe o espírito republicano, convida a cidadania ao exercício do controle dos mandatários e é útil à formação de uma opinião pública bem-informada. O exótico caso a seguir diz muito sobre como o comportamento de alcaides e os valores republicanos transitaram em um século de distância.
Graciliano Ramos é um dos maiores romancistas brasileiros, autor de obras como Vidas Secas, São Bernardo, Angústia, Infância e Caetés. O que poucos sabem é que sua carreira literária teve início na política. Entre 1928 e 1930, o romancista foi prefeito de Palmeira dos Índios, em Alagoas. Sua forma de prestar contas revelou ética inabalável, humor ácido e crítica implacável ao sistema político local. Desvelou o estilo mordaz e rigoroso que se consolidaria em sua literatura.
Um relatório enviado ao Conselho Municipal (a câmara, atualmente) e dois enviados ao governador Álvaro Paes, foram reunidos e publicados recentemente pela editora Record sob o título “O prefeito escritor: Dois retratos de uma administração”. As citações adiante transcritas vieram dessa obra, mas o conteúdo integral dos relatórios pode ser encontrado na internet.
Graciliano assumiu o cargo em meio ao cenário conturbado do final da República Velha, quando as oligarquias dominavam o cenário político. O país se chamava Estados Unidos do Brasil. Vigorava a Constituição de 1891. Os municípios não eram entes federativos, como hoje, mas partes integrantes dos estados-membros. No plano local, seu antecessor foi assassinado por um fiscal de tributos com quem se desentendera. Foi eleito com 433 votos, candidato único, apoiado por poderosos locais.
A anarquia administrativa que encontrou logo se tornou um dos alvos de sua crítica. Sarcástico, relatou as dificuldades de implantar uma governança centralizada e eficiente: “O principal (…) foi estabelecer alguma ordem na administração. Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. Para que semelhante anomalia desaparecesse, lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela — dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.”
O que destacava sua gestão não eram apenas as críticas mordazes, mas a busca de uma ordem legal. Constatou a ausência de regramentos: “Em janeiro do ano passado não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite. Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem. Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império. Era um delgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas (…). Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sebo. Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui aguentar-me, até que o Conselho, em agosto, votou o código atual.”
Consta que aplicou essas leis com imparcialidade, multando inclusive seu próprio pai, Sebastião Ramos, por deixar cabras soltas. Teria justificado assim: “Prefeito não tem pai.” Impessoalidade é isso.
Graciliano denunciou as condições precárias em que encontrou a cidade e os absurdos com que lidava no dia a dia. Ele descreve o contrato de iluminação pública: “A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. (…) Pagamos até a luz que a lua nos dá.”
A certa altura, justificou o adiamento da construção de um novo cemitério: “Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam.” Ao tempo em que justificava prioridades, converteu o cotidiano da administração pública em material literário.
Além da crítica aos contratos malfeitos, expressava sua frustração com a cobrança de impostos, que carecia de seriedade entre os contribuintes locais. Escreveu: “As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatório, que aqui os contribuintes pagam ao Município se querem, quando querem e como querem.”
O rigor com que aplicava suas reformas lhe rendeu inimigos entre os setores mais poderosos da cidade: “E não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores.” Com ele, duvidosas desonerações tributárias não floresceram.
Mesmo enfrentando resistência e críticas, Graciliano combateu o desperdício de recursos e a ineficiência. A respeito de vias públicas, anotou: “Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem em curvas muito caprichosas, sobem morros e descem vales de maneira incrível. O caminho que vai a Quebrangulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi, tem lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford e por lagartixa. Sempre me pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria.” Sua diretriz – para além do tema rodoviário – era clara: “Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis. Evitei emaranhar-me em teias de aranha.”
Ele criticou os excessos e futilidades de alguns administradores, relacionados à proclamação de realizações e que hoje seriam tratados como publicidade governamental: “Relativamente à quantia orçada, os telegramas custaram pouco. De ordinário, vai para eles dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspetores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao Governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha — um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua — um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela — um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1559 D. Pero Sardinha foi comido pelos caetés.”
Seus relatórios revelavam também um homem consciente da injustiça social. Escreveu: “Arrecadei mais de dois contos de réis de multas. (…) As infrações que produziram soma considerável para um orçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando. Esforcei-me por não cometer injustiças. (…) Atiraram as multas contra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.”
Sobre fomento econômico, acrescentou: “Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha; suprimi, nas questões rurais, a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte; estimulei as relações entre o produtor e o consumidor. Estabeleci feiras em cinco aldeias. 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de Fora. Canafístula era um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com gente. Nunca vi tanto porco. Desapareceram. E a povoação está quase limpa. Tem mercado semanal, estrada de rodagem e uma escola.”
Sua recusa em conceder favores a figuras influentes e sua tentativa de aplicar a lei de forma justa o colocaram em constante atrito com os poderosos. Foi irônico: “Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados.”
Em 1930, renunciou ao cargo de prefeito. Foi gerir a imprensa oficial alagoana e, três anos depois, a instrução pública estadual.
Seus relatórios de gestão, com seu tom literário e humor corrosivo, ecoaram além de Alagoas. Foi a partir desses documentos que ele começou a ser reconhecido nacionalmente. Augusto Frederico Schmidt, editor e poeta no Rio de Janeiro, leu-os e, intrigado pelo estilo, perguntou se ele tinha algum romance para ser publicado. A resposta foi afirmativa, e assim nasceu Caetés, seu primeiro livro, publicado em 1933.
Em 1936, Graciliano foi preso pela ditadura de Getúlio Vargas, acusado de ser comunista, o que o levou a escrever Memórias do Cárcere, em que ele documenta sua experiência de prisão. Essa vivência política e suas reflexões sobre o abuso de poder e a injustiça social formaram a base de toda sua obra literária. Antes, porém, de ser o literato brilhante, foi precursor da responsabilidade fiscal, praticante da legalidade, da moralidade, da eficiência, da transparência e da impessoalidade administrativa, como visto.
Integrante da Academia Sergipana de Letras Jurídicas