ARACAJU/SE, 16 de setembro de 2024 , 15:56:38

Alzheimer: cientistas brasileiros identificam substância que ajuda a fixar a memória

 

Uma estratégia diferente das empregadas até agora contra a doença de Alzheimer acena com a possibilidade de restaurar a memória. Um estudo liderado por cientistas brasileiros mostrou que uma substância derivada da cetamina restitui a capacidade de produzir as proteínas necessárias à comunicação entre os neurônios no cérebro. Sem essas proteínas, uma pessoa não guarda fatos aprendidos.

Chamada de HNK (sigla para hidroxinorketamina), essa molécula faz com que os neurônios possam de novo gravar um aprendizado, um processo que a ciência chama de consolidação da memória. A fixação da memória ocorre no hipocampo por meio de síntese de proteínas.

— Se não houver síntese de proteínas, uma pessoa esquece o que aprendeu em até duas horas — explica o neurocientista Sergio Ferreira, professor titular dos institutos de Biofísica e de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos autores do estudo, liderado pelo neurocientista Felipe Ribeiro, também da UFRJ.

É por isso que pessoas com Alzheimer por vezes até se recordam de fatos antigos, que já estavam consolidados e não foram destruídos, mas não daqueles ocorridos depois que adoeceram. As placas de beta-amilóide associadas à doença prejudicam a síntese de proteínas e a comunicação entre os neurônios.

Assim, o Alzheimer lhes rouba a capacidade de formar novas lembranças. Não é raro que uma pessoa afetada repita a mesma pergunta muitas vezes. A resposta nunca fica gravada e é como se a dúvida jamais houvesse sido respondida.

— Se tiver êxito em seres humanos, e acreditamos que há motivos para otimismo para isso, uma droga a base da HNK poderia fazer com os pacientes não esquecessem mais coisas básicas, como o nome de parentes e amigos e o endereço da própria casa — diz Ferreira.

Ele ressalva, porém, que restituir a capacidade de memorizar não significa recuperar as lembranças perdidas. O que foi destruído pelo Alzhmeir teria que ser reaprendido.

Além da UFRJ, participaram do estudo cientistas das universidades McGill, no Canadá; Columbia e Carleton, ambas nos Estados Unidos. O trabalho foi publicado na revista Alzheimer’s & Dementia, uma das mais conceituadas da área.

A pesquisa foi realizada com animais, mas há bons motivos para acreditar que seus resultados poderão ser reproduzidos em seres humanos, afirma o neurocientista Mychael Lourenço, da Bioquímica Médica da UFRJ e também coautor do estudo.

Diferentemente da cetamina, a HNK não é um anestésico, nem causa dependência ou alucinações. Ela é produzida pelo próprio corpo ao metabolizar a cetamina e a ciência aprendeu a sintetizá-la.

Lourenço destaca que a HNK age sobre os danos causados pelo Alzheimer e não em suas causas. Já os remédios disponíveis contra o Alzheimer, como recém-aprovado donanemabe, atuam sobre as placas de beta-amiloide associadas à doença e podem retardar em até cerca de 30% sua progressão. No entanto, a capacidade de aprender e guardar lembranças não é recuperada.

Além disso, essa classe de drogas só oferece resultados mais significativos quando a doença é diagnosticada em suas fases iniciais. Porém, quase sempre o diagnóstico acontece quando o paciente já está em estágio moderado.

— O Alzheimer começa silenciosamente. Talvez o cérebro de uma pessoa esteja acumulando beta-amiloide por 20 ou mais anos sem dar sinal — diz Lourenço.

Ele observa que os testes de diagnóstico que estão no mercado ainda estão longe da acurácia desejável e não foram estudados na população brasileira. Ferreira diz que existem testes experimentais que podem indicar com até 85% de acerto se uma pessoa desenvolverá a doença num período de cinco a dez anos, mas estes sequer estão aprovados para uso clínico em seus países de origem.

Em animais, a HNK teve êxito em impedir danos à formação de memória mesmo em presença das placas de beta-amiloide.

— Restaurar as sinapses, a comunicação entre as células, pode ser melhor do que apenas bloquear as placas — diz Lourenço.

Ferreira acredita que não haverá uma droga única para tratar as pessoas com a doença de Alzheimer e sim coquetéis de remédios, a exemplo do que acontece com a Aids.

— É uma doença complexa, com várias causas e envolvida em diferentes mecanismos no cérebro. Penso que haverá tratamento. Mas ele não será baseado num só remédio — enfatiza Ferreira.

Os cientistas resolveram investigar a HNK porque trabalhos anteriores do mesmo grupo já haviam indicado que a síntese de proteínas nos neurônios era prejudicada na doença de Alzheimer. E eles sabiam que HNK estimulava a síntese de proteínas.

No estudo também descobriram que a HNK estimula a expressão de genes relacionados ao funcionamento das mitocôndrias (estruturas celulares afetadas pelo Alzheimer) e outros processos celulares importantes para as funções dos neurônios.

— Pode ser que, além do efeito positivo na síntese de proteínas, a HNK seja também benéfica para outros processos biológicos nos neurônios — diz Ferreira.

Lourenço acrescenta que a HNK vem sendo testada no exterior em pessoas com depressão severa e foi mostrado que é segura. Oferece ainda a possibilidade de ter efeitos muito mais duradouros que os medicamentos existentes.

— Uma das coisas que torna a cetamina e seus derivados atraentes como tratamento é que fazem efeito rapidamente e ele perdura por muito tempo — explica Lourenço.

Ferreira diz que o maior obstáculo para que estudos avancem é a necessidade um laboratório farmacêutico se interessar em dar prosseguimento aos testes. E ele gostaria que esses testes fossem realizados no Brasil.

— Mas infelizmente no Brasil os testes avançados com pacientes são sempre de drogas estrangeiras, para que possam ser usadas no país. A pesquisa do Brasil dificilmente avança para a fase clínica, pois esbarra nos custos. Na melhor das hipóteses, acabamos exportando apenas ideias — ressalta Ferreira.

Fonte: O Globo

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