Volte o relógio para 23 de fevereiro, um dia antes de a Rússia lançar sua invasão total da Ucrânia, e pode-se ficar tentado a prever que os dias do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky no cargo estavam contados.
Afinal, as forças armadas da Rússia custavam dez vezes mais que as da Ucrânia. Moscou desfrutou de uma vantagem dupla sobre Kiev nas forças terrestres; e o Kremlin tinha dez vezes mais aeronaves e cinco vezes mais veículos blindados de combate de seu vizinho.
Visivelmente irritado, o presidente russo Vladimir Putin, apareceu na televisão poucos dias antes, fazendo um monólogo histórico e desconexo que deixou claro que ele não esperava nada menos do que uma mudança de regime em Kiev.
O líder do Kremlin parecia estar apostando que Zelensky fugiria de sua capital, assim como o presidente do Afeganistão, apoiado pelos EUA, havia deixado Cabul apenas alguns meses antes, e que a indignação ocidental diminuiria, embora com a dor temporária de novas sanções.
Cem dias depois, quaisquer planos que Putin possa ter para um desfile da vitória em Kiev estão em espera por tempo indeterminado. A moral ucraniana não entrou em colapso.
As tropas ucranianas, equipadas com armamento antitanque moderno entregue pelos EUA e seus aliados, devastaram colunas blindadas russas; mísseis ucranianos afundaram o navio Moskva, o orgulho da Frota do Mar Negro da Rússia; e aeronaves ucranianas permaneceram no ar, contra todas as probabilidades.
No fim de março, os militares russos começaram a retirar suas tropas da capital ucraniana, alegando que haviam mudado o foco para a captura da região leste de Donbass. Três meses após o início da invasão, a Rússia não parece mais almejar uma guerra curta e vitoriosa na Ucrânia – nem parece ser capaz de alcançá-la.
O problema do prognóstico
Isso significa que a Rússia está perdendo? É tentador analisar o panorama do conflito em um determinado dia e tirar conclusões abrangentes.
Os ucranianos conseguiram matar generais russos em um ritmo surpreendente; Moscou foi forçada a reorganizar seu comando militar após a desordem inicial; e as baixas russas, por mais indescritíveis que sejam os números oficiais, são chocantemente altas.
Mas a Rússia agora controla uma faixa de território ucraniano que se estende ao redor da segunda maior cidade ucraniana de Kharkiv, continua pelas cidades separatistas de Donetsk e Luhansk e chega ao oeste até Kherson, formando uma ponte terrestre que liga a península da Crimeia (anexada à força pela Rússia em 2014) com a região de Donbass.
O principal foco da Rússia está agora na região de Donbass, onde as coisas se estabeleceram em uma guerra de desgaste. Os combates recentes se concentraram em Severodonetsk, uma cidade industrial onde as forças ucranianas detêm a última porção da região leste de Luhansk.
As tropas ucranianas cederam a maior parte de Severodonetsk aos russos. A queda da cidade será uma perda simbólica, mas que analistas militares dizem que poupa as forças ucranianas de um cerco prolongado – e provavelmente perdedor.
“Kiev poderia ter comprometido mais reservas e recursos para a defesa de Severodonetsk, e seu fracasso em fazê-lo atraiu críticas”, disse o Instituto para o Estudo da Guerra, com sede nos Estados Unidos, em uma análise recente.
“Tanto a decisão de evitar comprometer mais recursos para salvar Severodonetsk quanto a decisão de se retirar dela foram estrategicamente sólidas, embora dolorosas. A Ucrânia deve empenhar seus limitados recursos em reconquistar territórios importantes”.
Em meio à ofensiva em Severodonetsk, Oleksandr Motuzianyk, porta-voz do Ministério da Defesa ucraniano, disse que as forças russas estão agora “tentando cercar nossas tropas nas regiões de Donetsk e Luhansk” e se reagrupando para lançar uma ofensiva na direção de Sloviansk, cidade estratégica que pode ser o próximo foco.
As batalhas no leste da Ucrânia estão sendo travadas em terreno muito mais aberto do que o ambiente urbano ao redor de Kiev. Isso explica a urgência com que os ucranianos solicitaram armamento mais pesado – particularmente sistemas de artilharia que podem atingir alvos a distâncias mais longas – dos EUA e seus aliados.
O presidente Joe Biden anunciou na quarta-feira (1º) que os EUA enviarão sistemas de mísseis mais avançados, incluindo aqueles de alta mobilidade com munições que podem chegar a 80 quilômetros, um alcance muito maior do que qualquer coisa que a Ucrânia tenha usado até hoje.
Essa é uma notícia bem-vinda para Kiev, mas a ofensiva da Rússia no leste está se desenrolando à medida que a atenção da mídia internacional sobre a Ucrânia se afasta um pouco das manchetes.
Pode ser com isso que Putin está contando, talvez consciente de que os altos custos de energia e o aumento dos preços ao consumidor – ambos exacerbados pela guerra na Ucrânia – são mais propensos a concentrar a opinião pública (e impulsionar os resultados das eleições) no Estados Unidos e outros lugares.
Putin também pode estar contando com curtos períodos de atenção diplomática. Este é o mesmo líder russo que reforçou seu apoio ao presidente sírio, Bashar al-Assad, em 2015, depois que Damasco sofreu uma série de derrotas. Essa guerra – agora em seu 12º ano – continua mesmo quando a atenção do mundo está na Ucrânia.
A esse respeito, Zelensky tem sido um dos maiores ativos da Ucrânia na guerra da informação. O presidente ucraniano fez uma série de aparições virtuais perante parlamentos ao redor do mundo, enquanto reforçava que é o povo ucraniano, não Putin, quem deve decidir os resultados deste conflito.
Nas aparições de Zelensky com soldados e civis ucranianos feridos, o líder ucraniano tira selfies e projeta um estilo de liderança caloroso, humano e discreto.
Isso contrasta com a única visita pública do líder russo a um hospital militar: Putin, em um jaleco branco de laboratório enorme, se encontrou com soldados e oficiais feridos que permaneceram rigidamente em posição de sentido diante de seu comandante-chefe.
Mas Putin, que acabou com toda a oposição política doméstica e efetivamente controla as ondas de rádio de seu país, não enfrenta a mesma pressão doméstica que Zelensky. Nikolai Patrushev, chefe do Conselho de Segurança de Putin, disse recentemente que as forças russas não estão “perseguindo prazos” na Ucrânia, sugerindo que Putin tem um cronograma muito mais aberto para sua guerra.
Os ucranianos, em contraste, temem que a fadiga internacional possa se instalar, levando a comunidade internacional a pressionar seus governos a fazerem concessões a Putin.
“Você tem os relógios, mas nós temos o tempo.” Esse ditado, atribuído ao Talibã, resumia o dilema dos Estados Unidos na luta contra a guerra do Afeganistão, um reconhecimento relutante de que as extremistas operavam em horizontes e cronogramas políticos diferentes, precisando apenas sobreviver – não derrotar – as Forças Armadas dos Estados Unidos.
Para ressignificar essa frase, o fator decisivo na Ucrânia pode ser quem tem tempo: um ditador russo que provavelmente manterá o poder até morrer, ou um povo ucraniano que está lutando pela sobrevivência nacional.
Fonte: CNN Brasil