Nem todo mundo talvez se lembre de Nelma Kodama. Desde junho, porém, um documentário que chegou ao streaming da Netflix não apenas se lembra do rosto que ficou famoso durante as investigações da Lava Jato — em um momento citado como “machista” e “humilhante” pela protagonista da cena –, como também se aprofunda na vida pessoal, carreiras e vezes em que a doleira estampou manchetes de jornal no Brasil e no mundo.
Doleira: A História de Nelma Kodama dá voz e espaço a uma mulher cuja fama se limitou a um status social (que não é bem visto por muitos na sociedade) e versos de uma música de Roberto Carlos. O documentário, claro, não deixa de mencionar o dia em que Nelma cantou Amada, Amante em uma sessão da CPI do Congresso Nacional, um dos momentos mais marcantes da operação da Polícia Federal, mas deu a chance para a doleira explicar os motivos dessa atitude, e também como foi parar no meio de uma investigação que abalou o mundo político à época.
“Eu não procurei fazer esse documentário. Quando eu estava presa em Portugal, eu fui procurada pela equipe da TX Filmes, em meados de outubro [do ano passado]. Eu recebi uma carta na qual eles demonstravam o interesse em fazer um documentário. Isso me surpreendeu, porque eu não esperava. Até pensei que fosse uma ‘pegadinha'”, declarou em conversa com o Terra.
Com direção de João Wainer, roteiro de Camila Kamimura e produção de Camila Villas Boas e Roberto T. Oliveira, a obra foca, principalmente, em como uma ex-dentista do interior de São Paulo cresceu e chamou atenção no meio político, a ponto de se tornar a primeira mulher a ser presa na Operação Lava Jato.
“[E quando me procuraram para fazer o documentário] eu falei: ‘Escuta, vocês não têm coisa melhor para fazer? Poxa vida, olha a minha condição. Que história que eu tenho para contar? Estou presa, o que vocês querem?’. E eles me responderam que minha história é de uma personagem clássica, que tem a ascensão, a queda, e ressurge. E é verdade. A minha vida foi de altos e baixos, mas eu nunca desanimei”.
Nelma realmente se encontrava em uma situação complicada quando foi procurada pela equipe de produção. Ela cumpria pena por tráfico de drogas — crime que ela sempre negou ter cometido – em Portugal. O documentário consegue acompanhá-la em sua extradição para o Brasil e cumprimento de pena em Salvador (BA), até ser solta para cumprir prisão domiciliar.
“E eu vou te falar uma coisa sinceramente: eu quis fazer esse documentário primeiro porque eu achei que foi uma grande oportunidade na minha vida. Eu alcancei absolutamente tudo o que eu quis. Tudo o que eu fiz na minha vida, fiz muito bem. Eu fui uma ótima doleira, excepcional nas minhas transações. Vou fazer, então, um documentário sobre a minha vida, mas contando com as minhas palavras. Quantas pessoas no mundo tem oportunidade como essa?”, pontuou. “Então, eu não vi absolutamente nada de errado nisso.”
Julgamentos e amores
Uma das principais queixas de Nelma durante a entrevista é não ter sido ouvida com a exposição que ganhou na Lava Jato e ter sua história julgada por pessoas que não a conheciam. “Nunca me procuraram para saber a verdade. Nunca me perguntaram por que eu cantei na CPI”, exemplifica a doleira, que alega ter sido alvo de machismo na época em que deu depoimento para a CPI da Petrobras e foi questionada se ela era amante de Alberto Youssef, um dos principais alvos da investigação.
“Será que essa pergunta seria feita para um homem? Como é que ele reagiria? Perguntaria para o Alberto [Youssef] se ele era amante da Nelma Kodama? Porque não perguntaram pra ele?”, provocou.
“Imagina eu presa, sob muita pressão, na frente de um monte de jornalista, de deputados, me secando, e sendo tratada desse jeito, abrindo a minha vida pessoal, eu sendo exposta todos os dias nos jornais. Você acha que eu responderia o quê? Até acho que eu fui elegante”, comentou Nelma sobre ter cantado Amada, Amante da CPI da Petrobras.
De fato a doleira acabou no caminho da Polícia Federal por ter um caso extraconjungal com Youssef. Por nove anos, ela manteve uma relação afetiva e também de negócios com o doleiro. O documentário mostra que o principal ramo de atuação de Nelma não era com políticos, mas com comerciantes da região da Rua 25 de Março, no centro de São Paulo. “Para você ver a dimensão da grandeza que eu tinha na minha mão, eu tinha um banco, o cliente era meu, o dinheiro era meu, as transações eram minhas. Eu trabalhava 18 horas por dia”, detalhou.
Natural de Lins, no interior de São Paulo, Nelma iniciou a carreira profissional na empresa do pai em Diadema, na Grande SP, que a levou até uma casa de câmbio em Santo André. De lá, se estabeleceu na capital paulista, onde começou a trabalhar em ruas de comércio popular. Por ali, operações policiais ocorriam com foco, principalmente, no contrabando.
Para não ser pega, Nelma tinha vários celulares (“é mais barato do que advogado e melhor do que prisão, definiu em fala que está no documentário) e usava nomes falsos. Gostava mais dos nomes de celebridades, como Cameron Dias e Julia Roberts.
Ao comentar o assunto em conversa com o Terra, Nelma justifica sua atuação como doleira dizendo não ser responsável pelas leis do País. “Eu estava fazendo o meu trabalho, que era o que? Comprar e vender dólar. Não era obrigação minha controlar as leis cambiais de um país. É por isso que existe o Banco Central, entendeu? Isso não é problema meu.”
Prisão e agressões
Outro acontecimento que trouxe fama para a doleira, antes mesmo do depoimento na CPI, foram os detalhes de sua prisão na Lava Jato. Ela, no entanto, garantiu no documentário que alguns fatos foram distorcidos.
Na madrugada de 15 de março de 2014, Nelma foi presa no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos (SP), antes de embarcar em um voo para Milão, na Itália. Durante a detenção, ela – que estaria tentando fugir da operação – teria sido flagrada com 200 mil euros dentro da calcinha. No documentário, ela esclarece que o dinheiro estava na calça – e não na peça íntima – e que ela não estava fugindo.
No período em que ficou presa, entretanto, ela contou que passou pelo que chamou de humilhações e até agressões no encarceramento: “Eu apanhei dentro da cadeia. Você acha que o Marcelo Odebrecht [ex-presidente da empreiteira Odebrecht que também chegou a ser preso] apanhou? Você acha que bateram no Alberto Youssef? Não. Eu apanhei. Apanhei de agente carcerário.”
Nelma recebeu uma condenação de 18 anos de prisão por evasão de divisas, operação de instituição financeira irregular, corrupção ativa e pertinência a organização criminosa após investigações da Lava Jato. Em junho de 2016, ela passou para a prisão domiciliar por ter fechado um acordo de delação premiada.
“Já foi, eu já superei [o que enfrentou na prisão]. Eu não tenho trauma, não tenho nada. Eu deito linda, acordo belíssima, tenho uma pele boa, meu cabelo brilha… sabe porquê? Eu não tenho rancor do passado. Pelo contrário, tenho gratidão. Principalmente, pelos meus inimigos. Agradeço a eles todos os dias porque eles são os responsáveis pelo meu sucesso. Porque cada vez que alguém me chutava, me jogaram pra baixo, eu levantava e falava: ‘Seu filho da p… Eu vou superar, vou superar porque eu sou mais do que isso’. E foi isso que eu quis mostrar no documentário também”, acrescentou.
Nova acusação
Anos após a Lava Jato, Nelma Kodama ainda tenta resolver pendências com a Justiça. Ela responde uma acusação de tráfico internacional de drogas em um caso que teve origem em Portugal, onde a doleira chegou a morar. Neste ano, a prisão domiciliar foi convertida em liberdade provisória, o que ainda implica em restrições, como uso da tornozeleira eletrônica – que ela não vê problema em exibir no documentário e também nas redes sociais.
O documentário dá espaço para Nelma se defender desta nova acusação. Segundo ela, foi o fato de ter se relacionado com um integrante do esquema que a levou a responder pelo crime em Portugal. Mais uma vez, de acordo com a doleira, uma paixão a colocou na mira da Justiça.
“Estou cansada disso. São dez anos da minha vida que passo por isso, e sabe para quê? Para brigar pela minha dignidade. Então, não fiz um documentário para me promover. Eu não preciso disso. Eu fiz para conhecerem a minha história, e que essa história sirva de exemplos para outras mulheres. Muitas se veem ali”, afirmou.
Planos futuros
Mesmo impedida de deixar São Paulo, sair de sua residência no período da noite e não poder retirar a tornozeleira eletrônica como parte de medidas impostas no processo em que responde por tráfico internacional de drogas, Nelma Kodama pensa no futuro e faz planos.
“Hoje, eu vivo tranquilamente na minha casa, entendeu? Eu recebo meus amigos, desfruto desse sucesso da Netflix e dou consultorias de moda, de evento, de festa”, disse. “Eu aprendi de tudo. Sou uma mulher que viajei, tenho cultural, então eu sei falar sobre arte, sobre moda, sobre comportamento, sobre superação, né? Então tenho estudado o lançamento da minha marca para que eu possa [vender] cursos de mentoria”.
“Não é coach, não. Eu não acredito em coach. Muitos deles falam de coisas que nem viveram e está lá te dando conselhos. No meu caso, eu falaria de coisas que eu realmente passei”.
Para a doleira, as pessoas estão “perdidas” e precisam “de um norte” em suas vidas – e ela quer trabalhar ajudando quem queira os seus conselhos. “Olha, desde a Lava Jato, quando eu estava no presídio, eu era uma pessoa diferenciada. Então, me procuravam e me pediam conselhos, sabe? Queriam saber minha opinião sobre diversos assuntos. E isso é o que? É conhecimento. Ninguém tira isso de você”.
Enquanto o projeto para uma marca própria não sai do papel, Nelma diz projetar um “futuro brilhante” e uma “vida tranquila” daqui para frente. “Uma vida onde eu possa desfrutar verdadeiramente de tudo aquilo que eu plantei. Sejam coisas boas ou coisas ruins. Eu não me arrependo absolutamente de nada que eu fiz. Porque eu não vou mudar o passado, mas o meu futuro eu posso mudar. E faço isso vivendo da melhor forma possível, dando o melhor de mim mesma e aprendendo com meus erros”.
Fonte: Terra