A aprovação e sanção da Lei Federal 14.790/2023, que regulamenta o mercado de apostas esportivas on-line, conhecidas como bets, vem se desdobrando em uma série de discussões entre autoridades e especialistas. Uma das mais fortes é quanto ao agravamento dos problemas de saúde relacionados ao vício em jogo, também conhecido como ludopatia. Ainda não há estatísticas oficiais consolidadas sobre quantos brasileiros enfrentam esse problema atualmente, mas uma estimativa feita pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) aponta que exista uma média de 2 milhões de pessoas viciadas em jogos.
Um termômetro da situação atual pode ser medido na procura pelos grupos de apoio para tratamento, como a irmandade Jogadores Anônimos, que funciona de forma semelhante aos Alcoólicos Anônimos e reúne pessoas viciadas em jogos para compartilhar as suas experiências e se ajudarem dentro da linha de conduta baseada nos lemas “Um dia de cada vez” e “Só por hoje”. Uma reportagem publicada em fevereiro pelo portal UOL mostrou que uma média de duas ou três pessoas por dia procuram a ONG em busca de ajuda, e que a maioria delas é de pessoas jovens, abaixo dos 35 anos, mas também há menores de idade que já se declararam ludopatas.
A situação atual se explica não apenas pela febre das bets, que hoje tem cerca de 300 empresas especializadas no Brasil. Há também cassinos virtuais sediados no exterior, que podem ser acessados pelo celular e via internet. Eles são responsáveis principalmente pelo chamado “jogo do tigrinho”, que passou a ser bastante acessado por causa das promessas de ganho fácil de dinheiro.
Segundo o psiquiatra Augusto César Santiago Araújo Júnior, professor do curso de Medicina da Universidade Tiradentes (Unit), há evidências crescentes de que a popularização das apostas eletrônicas e dos cassinos online tem levado a um aumento na demanda por serviços psiquiátricos e psicológicos. “Embora seja difícil mensurar com precisão devido à falta de dados específicos em algumas regiões, estudos internacionais indicam um aumento significativo nos casos de vício em jogo, especialmente entre jovens adultos. Esse fenômeno pode ser medido pelo aumento no número de diagnósticos de transtorno do jogo e pela maior procura por serviços de tratamento especializados”, diz.
Boa parte desta demanda também acaba desaguando no Sistema Único de Saúde (SUS), que encaminha os pacientes para os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). “Esse aumento da demanda coloca uma pressão adicional sobre o sistema público de saúde, que muitas vezes já está sobrecarregado. Em muitos casos, há uma falta de profissionais treinados especificamente para lidar com vícios comportamentais, e os serviços disponíveis podem não ser suficientes para atender a todos os necessitados”, avalia César, pontuando que estigmas e preconceitos associados ao vício em jogo podem impedir que outros muitos pacientes busquem ajuda, até que entrem em uma situação crítica.
Discussões pertinentes
Assim como o professor César, muitos outros especialistas que acompanham o assunto alertam que a legalização das apostas e dos jogos de azar pode potencialmente agravar a situação, especialmente se não for acompanhada por medidas de controle e prevenção. “Aumentar o acesso a esses jogos pode levar a um aumento no número de pessoas vulneráveis ao desenvolvimento de vícios, particularmente entre aqueles que já têm predisposição a problemas de saúde mental”, afirma ele.
Por outro lado, a discussão sobre a legalização das bets traz uma oportunidade para implementar regulamentações mais rigorosas e programas de educação pública sobre os riscos do jogo. Algumas destas regras já estão previstas na chamada “Lei das Bets”: incluindo a limitação dos meios de pagamento das premiações, combate à lavagem de dinheiro e políticas de jogo responsável, com mecanismos de proteção dos apostadores contra problemas associados ao jogo, superendividamento e fraudes.
“Políticas públicas eficazes para combater o vício em jogos devem incluir a regulamentação estrita dos operadores de jogos, com exigências para identificar e ajudar jogadores problemáticos. Isso pode incluir limites de apostas, autoexclusão, e a obrigatoriedade de exibir mensagens de aviso sobre os riscos do jogo. Além disso, é essencial investir em campanhas de conscientização pública e programas de prevenção, bem como na formação de profissionais de saúde para identificar e tratar o vício em jogo. A criação de serviços de suporte e linhas de ajuda dedicadas também pode ser uma medida eficaz, afirma César.
O que é a ludopatia
O vício em jogo, também chamado ludopatia ou transtorno do jogo, é classificado no DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) como um transtorno de controle de impulsos,caracterizado por um comportamento persistente e recorrente de jogar ou apostar. Entre suas características, estão a necessidade de apostar quantias crescentes para alcançar a excitação desejada, tentativas fracassadas de parar ou reduzir o jogo, e comprometimento das atividades pessoais, sociais e profissionais.
“Inicialmente, ele ativa o sistema de recompensa do cérebro, criando uma sensação de prazer. Com o tempo, no entanto, o jogador pode se tornar ‘viciado’ na excitação do jogo, independentemente do resultado financeiro. Isso vai além de uma simples busca por dinheiro; envolve a busca por uma estimulação emocional e alívio do estresse ou ansiedade. Há também o fenômeno da ‘falácia do jogador’, onde a pessoa acredita que pode prever ou influenciar o resultado de jogos de azar, o que perpetua o ciclo de jogo”, explica o professor.
Ainda de acordo com César, o tratamento da ludopatia, em geral, envolve técnicas de psicoterapia, principalmente a terapia cognitivo-comportamental (TCC), que ajuda os pacientes a identificar e modificar padrões de pensamento distorcidos e comportamentos relacionados ao jogo. Em alguns casos, a terapia é acompanhada da medicação com antidepressivos, estabilizadores de humor, entre outros. Programas de autoajuda e grupos como os Jogadores Anônimos também podem colaborar com o controle do vício.
Fonte: Asscom Unit