Até o começo dos anos 1990, crianças e adolescentes no Brasil eram denominados como “menores”, termo originado de legislações antigas que vinculavam a infância à marginalização, especialmente entre as populações mais pobres. Os Códigos de Menores de 1927 e 1979 legitimavam o controle social e a repressão, sobretudo sobre jovens das periferias, influenciados por períodos autoritários da história nacional. Foi somente com a Constituição Federal de 1988 e, dois anos depois, com o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que o país passou a reconhecer esses grupos como sujeitos de direitos em condição especial de desenvolvimento.
Trinta e cinco anos depois, os dados indicam que a defesa da infância ainda é uma urgência. Para a pesquisadora Hemilly Gabriellen Santana Santos, mestre em Direitos Humanos pela Universidade Tiradentes (Unit), o ECA marcou uma ruptura histórica com a visão punitiva que o Estado tinha em relação à infância. “O Estatuto substituiu a doutrina da situação irregular pela doutrina da proteção integral, reconhecendo crianças e adolescentes como titulares de direitos. Ele assegura acesso à saúde, educação, dignidade, convivência familiar e comunitária, e estabelece que a proteção desse público é uma responsabilidade compartilhada entre Estado, família e sociedade”, detalha Hemilly.
Ela destaca que essa mudança decorreu de um processo de mobilização social, e não de concessão política. “A participação ativa da sociedade, inclusive de crianças e adolescentes na Assembleia Constituinte, foi fundamental para a garantia dos direitos desse grupo e para os avanços posteriores. Por isso, proteger esses direitos exige o engajamento coletivo, seja por meio de fiscalização, denúncias, proposição de políticas públicas ou ações sociais. No setor público, a criação de redes de proteção integradas entre instituições é vital para assegurar um suporte efetivo, evitando que a responsabilidade fique concentrada em poucos órgãos e prejudique o atendimento desse grupo vulnerável”, ressalta.
Direitos reconhecidos, mas aplicação desigual
Apesar dos progressos, Hemilly chama atenção para os obstáculos que ainda dificultam a implementação plena do Estatuto. Para ela, não se trata de alterar a lei, mas de garantir sua aplicação levando em conta as desigualdades estruturais. “Embora crianças e adolescentes enfrentem uma vulnerabilidade comum, alguns grupos são mais expostos a riscos e têm seus direitos violados com maior frequência, em razão de desigualdades raciais, de gênero e socioeconômicas. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que meninos negros são os mais atingidos pela violência letal e meninas negras pelos crimes sexuais, revelando graves falhas na proteção desses segmentos. Por isso, é imprescindível que essas desigualdades sejam consideradas na elaboração e execução de políticas públicas voltadas para infância e juventude”, afirma.
A pesquisadora também alerta para as ameaças recentes aos direitos infantojuvenis, sobretudo no ambiente digital. “Entre os riscos atuais para crianças e adolescentes, destacam-se a maior exposição às redes sociais e grupos de ódio, que aumentam a vulnerabilidade a crimes, como desafios virtuais perigosos, além do acesso a conteúdos violentos e desinformação. Diante disso, é urgente desenvolver mecanismos de proteção e supervisão. Nesse sentido, a restrição do uso de celulares nas escolas é vista como medida positiva, pois diminui o tempo de exposição a esses riscos”, observa.
A efetividade do ECA depende da cooperação entre poder público e sociedade civil. Atualmente, a atenção maior está voltada para políticas destinadas à primeira infância (0 a 6 anos), reconhecida como etapa mais sensível do desenvolvimento humano. “Já existe o Marco Legal da Primeira Infância, que trouxe importantes avanços ao considerar infâncias antes negligenciadas, como as de filhos de mulheres presas. Por isso, é necessário enxergar os direitos da infância em sua diversidade, contemplando crianças em situação de rua, de comunidades tradicionais e aquelas afetadas pelo encarceramento familiar. As adolescências também não podem ser ignoradas, e as políticas devem priorizar educação digital, saúde mental e programas como o Jovem Aprendiz”, destaca.
Infâncias invisibilizadas
A dissertação de mestrado de Hemilly, intitulada “Proteção integral para quais infâncias e adolescências? Diagnóstico das violações dos direitos humanos de filhos(as) de mães encarceradas”, aborda a vulnerabilidade dessa população. “Minha pesquisa investiga como a doutrina da proteção integral, prevista na Constituição de 1988 e no ECA, falha em garantir direitos a essas crianças e adolescentes, cujos direitos são violados pelo vínculo familiar com pessoas privadas de liberdade. As violações incluem recém-nascidos em prisões precárias, sem alimentação e vacinação adequadas, além de gestação e parto sem assistência médica, expondo os bebês a riscos severos. Fora do cárcere, enfrentam desestruturação familiar, separação dos irmãos, institucionalização, exclusão social, evasão escolar e problemas de saúde mental”, explica.
Apesar de iniciativas positivas em estados como Goiás, com o projeto “Amparando Filhos”, Hemilly destaca que, em Sergipe, ainda não há políticas efetivas para essa população. “Preocupa que a única tentativa legislativa, o Projeto de Lei nº 176/2020, foi arquivada. Embora o novo Plano Estadual da Primeira Infância reconheça crianças de comunidades tradicionais, como quilombolas e indígenas, não menciona os filhos de mulheres encarceradas, evidenciando o esquecimento desse grupo. Esse é um problema nacional, e só será solucionado por meio de debates e proposições”, revela.
Para a pesquisadora, os próximos anos devem direcionar esforços para políticas que reconheçam as múltiplas infâncias, sem esquecer os adolescentes. Além disso, garantir o futuro das próximas gerações depende de uma ação conjunta. “Programas focados na primeira infância, como o Marco Legal, são avanços relevantes, mas é necessário ampliar essa perspectiva. A adolescência também precisa ser valorizada, com atenção à saúde mental, capacitação profissional e inclusão digital, por meio de uma educação crítica sobre o uso das redes sociais. Nenhuma infância pode ser deixada para trás”, conclui.
Fonte: Asscom Unit