No início dos anos 1980, Ricardo Botelho ganhou um Apple 2, um dos primeiros microcomputadores pessoais produzidos em massa no mundo, com design e tamanho inovadores. Passou horas programando. Quando se formou em engenharia elétrica, fez as malas e foi para os Estados Unidos trabalhar desenhando processadores. Ficou seis anos na GTE, da área de telecomunicações. Desde então, tornou-se um assíduo cliente da Apple e considera sua maior influência Steve Jobs, cofundador da empresa de eletrônicos.
“Ele buscava ter a sensibilidade de entender o que os clientes queriam, sem que eles nem percebessem essa demanda”, diz Botelho, hoje presidente do grupo Energisa. “Esse é o propósito que rege a inovação aqui, um grupo que se vê como uma startup desde 1905, com cultura inquieta e empreendedora, que enxerga a inovação não como um fim, mas como meio para atender melhor aos clientes.” A Energisa celebra 120 anos de história em 2025 atendendo a 8% da eletricidade e 12% do mercado de gás canalizado do Brasil. São pouco mais de nove milhões de clientes nas cinco regiões do país, com perfis diferentes. Pela excelência no trabalho, ficou em quinto lugar na pesquisa do anuário Valor Inovação Brasil 2025. O desafio da organização se combina ao momento do setor elétrico, que atravessa uma fase de transformação com geração distribuída, empoderamento do consumidor, descarbonização e inteligência artificial (IA) como ferramenta na busca de eficiência.
Botelho ressalta que IA não é novidade para o grupo, mas tem sido incorporada desde a metade da década passada, com aperfeiçoamentos contínuos. Exemplifica com sua aplicação em um tema que tira o sono de muitas distribuidoras Brasil afora: perdas não técnicas — os furtos de energia, ou “gatos”, que trazem prejuízos para as concessionárias e menor arrecadação para os entes públicos. A empresa foi pioneira no uso de algoritmos para avaliar padrões de anomalia, como fazem as emissoras de cartões de crédito para detectar padrões irregulares de gastos. Tem aperfeiçoado o sistema com mais IA aplicada à análise de dados. Em sete anos, conseguiu evitar 950 GW de perdas, suficiente para abastecer uma cidade de 400 mil clientes por um ano. As perdas não técnicas hoje estão em 3,74%, um dos índices mais baixos do país.
Outro problema eram os clientes que mudavam a titularidade da conta para outra pessoa, para evitar o pagamento da conta no antigo nome. Essa mudança no cadastro não implica o pagamento da conta atrasada, segundo uma determinação da agência reguladora. Por meio de uma ferramenta de inteligência artificial, analisam-se dados da pessoa que quer mudar a titularidade e os substitutos e seu histórico de crédito e eventuais débitos. “São medidas que geram mais de R$ 25 milhões por ano”, diz o executivo.
Assim como as empresas inovam para criar processos, a indústria da fraude também cria meios de burlar o pagamento de contas. Um dos problemas apontados está nos medidores de energia elétrica que fazem a leitura mensal do consumo de luz. Em análises, uma equipe identificou que havia aparelhos modificados por controle remoto ou até por voz, por meio de aplicativos, em que o usuário alterava a medição em alguns momentos do dia. O processo foi sendo aperfeiçoado e se descobriu que as fraudes ocorrem dentro dos medidores eletrônicos, mas não são visíveis aos olhos humanos. Foi criado então um equipamento chamado de VAR-Scan, em homenagem à ajuda eletrônica do árbitro de futebol. Os eletricistas da companhia vão às instalações de uma empresa ou a um condomínio em que constam anomalias. Pelo aparelho, que cabe na mão, fazem a leitura dos medidores e podem constatar se a assinatura eletrônica dos equipamentos foi ou não corrompida. A inovação foi apresentada em seminário da área de distribuição no Brasil neste ano e deverá começar a ser comercializada para as empresas interessadas em breve.
Gerenciar 600 mil quilômetros de redes de média tensão pelo país traz desafios. Um é analisar o funcionamento de transformadores de força, equipamentos caros, de cerca de US$ 1 milhão, e que podem levar a quedas de eletricidade. Desde 2023, em distribuição, a empresa passou a adotar uma postura mais proativa com um modelo preditivo em que se busca antecipar manutenções ou substituições dos equipamentos. Quando os transformadores começam a apresentar falhas mais graves, notam-se emissões de gases nos óleos do equipamento, como nitrogênio ou acetileno. Software e sensores instalados permitem a leitura desses dados. Hoje, mais de mil transformadores atuam nessas condições. “Só em 2024 foram feitas as trocas de 16 equipamentos antes que eles apresentassem problemas e tivemos eficiência de R$ 20 milhões.”
A análise das redes também tem ganho reforço constante de drones e a gestão de campo das equipes, digital e em plataforma única, está em atualização. A novidade resulta de um investimento de R$ 160 milhões que será concluído até 2027. “O despacho das equipes passa a ser automatizado e feito de acordo com IA. O colaborador que despachava as equipes passa a ser automatizado e feito de acordo com IA. O colaborador que despachava as equipes ganha outra função: gerir os serviços a serem executados. Isso traz otimização para todos os processos”, conta Botelho.
Na área de distribuição de energia elétrica, a empresa lida com milhões de clientes em diversas regiões do país. São realizados 120 milhões de atendimentos anuais, sendo que 94% resolvidos de forma digital, o que permite oferecer outros serviços, como parcelamentos por aplicativos ou venda de seguros. Pelas normas da agência reguladora, a distribuidora precisa manter um canal presencial para os clientes, mesmo que o atendimento digital predomine. Para atender às normas e os clientes presenciais e ainda assim reduzir custos, a companhia está colocando em operação um projeto de atendimento com auxílio de um totem. O cliente pode fazer a requisição presencial em um posto de atendimento e o atendente responder em um call center. Até 2027, a intenção é ter 550 totens desses espalhados pelas áreas de concessão.
A rede de energia tem se transformado. Novos negócios podem surgir. Há 20 anos, hidrelétricas respondiam por grande parte da energia em linhas de transmissão das regiões Sul e Norte ao Sudeste, que representam 70% do consumo da energia no país. Hoje 30% da energia vem de eólicas e solares, a geração distribuída responde por mais de três usinas hidrelétricas de Itaipu, com 12 GW, a segunda maior do mundo, e os fluxos de energia entre Nordeste e Sudeste são crescentes. As distribuidoras poderão ter um papel nesse cenário, tornando-se minioperadoras de rede e oferecendo outros serviços para lidar com as mudanças de frequência e tensão, decorrentes do avanço de fontes variáveis.
“Isso é um desafio, mas cria uma oportunidade. Podemos ter soluções de baterias, de resposta da demanda, com um modelo que busque maior flexibilidade”, Botelho. Nesse caso, a empresa já está investindo R$ 20 milhões em Palmas (TO) para estudar aplicações a fim de adaptar a rede aos desafios surgidos com o avanço de recursos distribuídos. A figura regulatória desse operador — no jargão do setor conhecido como DSO, sigla em inglês para Distribution System Operator — ainda não foi criada. Um decreto do governo federal sobre o processo de renovação de concessão de distribuição indica que criá-lo será papel da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). “Isso poderá ser um catalisador”, diz Botelho, de olho no futuro.
Fonte: Valor