Passado quase um ano da sanção do projeto de lei que regulamentou as apostas esportivas no Brasil, um dos “pais” do processo vê que um tema ficou de fora da regulamentação: as apostas para beneficiários de programas sociais. Em entrevista exclusiva à Exame, Francisco Manssur, ex-secretário de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda e um dos responsáveis por articular a aprovação do projeto, afirmou que, da forma que foi desenhada, a regulação do setor vai permitir o cruzamento de dados. Assim, seria possível avaliar se quem recebe o Bolsa Família ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC) está apostando e limitar o acesso dessas pessoas às chamadas bets.
“Essa é uma discussão importante. Teremos muita informação sobre os apostadores, e talvez seja necessário discutir se beneficiários de programas sociais, como o Bolsa Família ou o BPC, deveriam ter acesso ao mercado de apostas”, diz. “Não é difícil cruzar os dados dessas pessoas, e pode ser o caso de criar uma limitação para proteger essas pessoas, dado o perfil socioeconômico delas. Essa é uma questão que pode ser aprimorada no futuro.”
Advogado desde 1998, Manssur sempre atuou na área do direito esportivo. Ele já trabalhou com clubes, empresas e entidades esportivas. Em 2015, propôs ao senador Rodrigo Pacheco a criação da lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF). Sua relação próxima com Gabriel Galípolo, ex-secretário executivo da Fazenda e indicado para assumir a presidência do Banco Central, foi determinante para chegar ao cargo de assessor da Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda. Lá, liderou a redação da regulamentação das apostas e articulou com o Congresso para que o projeto fosse aprovado.
No começo deste ano, Manssur deixou o cargo por entender que “cumpriu a sua missão” e para pacificar disputas políticas pelo controle das autorizações das apostas esportivas. Hoje, o advogado é sócio do escritório CSMV Advogados.
Além da sugestão de melhoria do setor, o ex-secretário da Fazenda fala sobre os desafios da regulamentação, como vê o setor em 2025 e a necessidade de combater o vício em apostas.
Veja a entrevista completa com Francisco Manssur
Como surgiu a necessidade de regulamentar as apostas?
As apostas foram legalizadas em 2018, mas a própria lei de 2018 mandava regulamentar em dois anos, prorrogados por mais dois. Essa lacuna de regulamentação causava uma série de problemas. Uma das questões que chamou muita atenção do governo na transição foi o fato de que, sem regulamentação, não havia meios para tributar. Então, você imagina todos os segmentos econômicos sendo tributados, alimentação, indústria, e esse segmento, não. Nós não tínhamos nem acesso a muitos dados, porque não havia regulação, não havia informação. Mas ouvíamos números que diziam que esse segmento movimentou R$150 milhões e não pagava R$ 1 de tributo. E descobrimos que era muito mais que isso. Sem a regulamentação, você não controla a propaganda, não combate a lavagem de dinheiro, não traz políticas efetivas para combater o vício, que é algo muito importante e que estava crescendo muito. Então, fiquei um ano e um meio no Ministério da Fazenda.
E como foi esse processo dentro do Ministério?
Fiz quase 500 reuniões com todos os segmentos. Isso foi muito intenso no primeiro semestre de 2023. Também estudei os casos de outros países, porque o Ministério da Fazenda praticamente não tinha nada sobre o assunto. Não havia histórico, estudo, até porque o governo anterior fingia que esse era um “não assunto”. No segundo semestre, além de continuar ouvindo o mercado, também dialoguei muito com o Congresso.
Como você vê o futuro desse mercado regulado? Quantos sites devem ter no Brasil no ano que vem?
Tivemos 113 pedidos de autorização. Se cada um desses pedidos avançar e for aprovado, cada um pode ter três bandeiras, ou seja, quase 300 ou 400 sites de apostas no Brasil. Quando estávamos na Fazenda, mapeamos quase 1.000 domínios que estavam oferecendo apostas no Brasil. Com a regulamentação, o número pode dobrar.
Você vê um espaço para fusões e aquisições nesse mercado?
Agora, até as autorizações saírem, o mercado vai se ajustar internamente. Após isso, haverá um novo movimento no mercado, com fusões e aquisições. É possível que o número de 113 diminua um pouco por conta dessas fusões, mas também já sentimos que novas empresas estão interessadas em entrar no mercado e podem fazer novos pedidos de autorização.
O mercado vê que a regulamentação foi restritiva. Você concorda?
A regulação é restritiva porque tem que ser. Precisamos garantir que as empresas tenham condição financeira para assegurar os prêmios e que estejam constituídas no Brasil. Quando forem autorizadas, elas terão que pagar uma outorga de R$ 30 milhões.
Sobre a questão dos jogoz como Tigrinho e do aviãozinho, você mencionou que o problema não é o jogo em si, mas a forma como ele é vendido. Poderia explicar melhor?
Se você faz uma propaganda fraudulenta desses jogos e informa para as pessoas que, jogando o Tigrinho ou o aviãozinho, elas vão ficar ricas, você está cometendo um mal por causa da propaganda. Eu sempre gosto de dar um exemplo um pouco controverso, mas interessante. Se eu pegar um influenciador e colocá-lo dizendo: “Estou tomando só Coca-Cola o dia inteiro e olha como estou forte, como emagreci e fiquei saudável”, ele vai influenciar milhões de pessoas a fazerem essa tal “dieta da Coca-Cola”, o que vai fazer muito mal a elas.
Então é uma questão de propaganda?
Sim. O problema não é o Tigrinho ou o aviãozinho, o problema é a mensagem. É a forma como isso é vendido. O que vimos muito e vamos combater com a regulamentação são fraudes reais. Pessoas programavam seus celulares para fazer vídeos mostrando: “Em 10 minutos, eu ganhei R$ 25 mil”. Isso era uma fraude, uma propaganda enganosa, que deve ser combatida. Isso pode ser feito em relação ao Tigrinho, ao aviãozinho, às apostas esportivas, ou até mesmo em relação a outras situações, como alguém dizendo que abriu uma página no Instagram e em 10 minutos ganhou R$ 25 mil.
E quanto ao combate ao vício em apostas, como a regulamentação pode ajudar?
O ponto central da regulação é o jogo responsável. Nós proibimos o uso de cartão de crédito nas apostas, o que é fundamental, pois uma pessoa compulsiva poderia apostar ilimitadamente. Só é permitido apostar com saldo disponível na conta, o que limita o risco. Também proibimos os bônus de entrada, que são muito usados para atrair novos apostadores, algo que pode incentivar o vício. Nós criamos regras para que as operadoras ofereçam políticas de enfrentamento ao vício e sejam responsáveis pela forma como divulgam as apostas, limitando propagandas enganosas que prometem enriquecimento fácil.
Você acha que o governo fez o suficiente para combater o vício ou há mais a ser feito?
Nós fizemos quatro reuniões com o Ministério da Saúde, e propusemos a criação de um grupo de trabalho para enfrentar a questão da ludopatia. É importante que o Ministério da Saúde, que tem a capacitação técnica, conduza essa interlocução com os profissionais de saúde. Não é papel do Ministério da Fazenda liderar essa conversa, mas temos trabalhado para que o tema seja tratado de maneira adequada. Espero que esse grupo de trabalho esteja sendo criado agora. Além disso, parte da arrecadação tributária das apostas vai para o Ministério da Saúde, que pode usar esse valor para implementar políticas públicas e tratar o vício em jogos.
E sobre os beneficiários de programas sociais, como o Bolsa Família, você vê alguma necessidade de restringir o acesso deles às apostas?
Eu acredito que essa é uma discussão importante. Nós teremos muita informação sobre os apostadores, e talvez seja necessário discutir se beneficiários de programas sociais, como o Bolsa Família ou o BPC, deveriam ter acesso ao mercado de apostas. Não é difícil cruzar os dados dessas pessoas, e pode ser o caso de criar uma limitação para proteger essas pessoas, dado o perfil socioeconômico delas. Essa é uma questão que pode ser aprimorada no futuro.
Quanto à judicialização do setor, você acredita que haverá muitos questionamentos?
Acredito que sim. O mercado é muito competitivo, e é natural que surjam questionamentos judiciais sobre as autorizações concedidas. Isso faz parte do processo democrático. O judiciário vai estabelecer precedentes e criar uma segurança jurídica maior para o setor. Isso é positivo e faz parte do amadurecimento do mercado. Claro, algumas ações podem ser temerárias, mas o judiciário tem mecanismos para lidar com isso.
E qual foi o motivo da sua saída do Ministério?
No dia 23 de fevereiro, conversei com o ministro sobre minha saída. Pedi para sair porque senti que meu trabalho estava completo, que as parcerias estavam muito bem encaminhadas, e achei que era hora de voltar ao mercado. Primeiramente, tinha que cumprir a quarentena, então consultei a Comissão de Ética sobre isso. Fui liberado em maio, e no dia 5 de junho comecei a trabalhar no CSMV Advogados, que é um escritório muito relevante na área de direito esportivo.
Sua saída foi apenas porque você achou que seu trabalho estava concluído?
Sim, eu achei que meu trabalho estava concluído. Mesmo com as portarias ainda em andamento, o mercado só vai ser regulado efetivamente no ano que vem. Claro que eu tenho curiosidade para ver como vai funcionar, mas existem alguns aspectos importantes a serem considerados. Primeiro, havia uma discussão com o Ministério do Esporte sobre quem iria dar as autorizações. O Ministério do Esporte estava reivindicando isso, e havia a defesa do presidente da Câmara nesse processo.
Era uma questão política?
Segundo o ministro e o secretário executivo, essa questão estava atrapalhando um pouco a relação do ministro com a Câmara. Eu disse ao ministro que não via base legal para o Ministério do Esporte dar as autorizações, porque a lei expressamente dizia que era o Ministério da Fazenda. Mas se essa discussão estava realmente criando um problema, talvez a troca de pessoa pudesse ajudar a resolver a questão, e foi o que aconteceu. Com a minha saída, a discussão evoluiu e chegou a um consenso.
Fonte: Exame