Diante de estranhos, o buldogue Jacques dá o que parecem ser saltos olímpicos, a gata Jovelina observa atentamente, e o par de peixes Peixoto e Aguinaldo apenas desliza para lá e para cá. Cada um com características de sua espécie, esse pequeno grupo integra uma população brasileira de animais de estimação, ou “pets”, na palavra em inglês, que já supera 168 milhões de indivíduos — uma das maiores do mundo.
Os bichanos brasileiros ultrapassam a soma das quatro maiores torcidas de futebol — Flamengo, Corinthians, São Paulo e Palmeiras reúnem cerca de 100 milhões de torcedores. Cabem quase dois “pets” em cada um dos 90 milhões de domicílios do país e, em suma, eles já são praticamente “um Brasil” a mais no território. O Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou 203 milhões de cidadãos.
Pode-se listar uma série de mudanças comportamentais com o passar das décadas mais recentes que ajudam a explicar o ganho de espaço dos animais de companhia nas casas brasileiras, segundo fontes consultadas pelo Valor. Desde a escolha feita por mulheres e casais por um número menor de filhos, passando pelo natural processo de envelhecimento da população, a outros fatores que levam a mudanças no estilo de vida que aceitam bem esses visitantes, como residir em domicílios menores.
Apesar das diferentes avaliações sobre o retrato do cenário, a percepção comum é a de que o relacionamento com a natureza — seja por meio da companhia de animais ou do cultivo plantas — é uma necessidade para o ser humano. Sobretudo para os que vivem nas grandes cidades, sufocados pelo processo de verticalização (construção de edifícios), o qual tira até mesmo a possibilidade de ver o horizonte. É uma realidade bem paulistana, por exemplo.
Uma consulta feita pelo IBGE em 2013, mostrou que o país reunia 132 milhões de animais de estimação, informa o Instituto Pet Brasil (IPB). Os dados mais recentes do mesmo IPB apontam para uma população de 150 milhões em 2021. O instituto contrata estatísticos e economistas para fazer o cálculo.
Enquanto isso, a Euromonitor indica que os “pets” já somavam 168 milhões no ano passado, conforme o site da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet). São os dados mais recentes, informam as duas instituições.
Apenas como curiosidade, uma consulta feita aos arquivos do Ministério da Saúde indicou que entre 2013 e 2021 nasceram 26 milhões de crianças no país. No mesmo período, o número de animais de estimação avançou em 18 milhões, se consideradas as estatísticas citadas. Seja para fazer companhia às crianças, que têm cada vez menos irmãos, ou para tornar-se “filhos” de “pais de pets”, cachorros, gatos, peixes, roedores, entre outros, são alvos de contínuas campanhas de adoção realizadas por ONGs e empresas.
Com isso, o amor pelos animais de companhia impulsiona um setor bilionário da economia, com direito à representação de grupo de articuladores junto ao Congresso Nacional que busca a redução da alta carga tributária incidente sobre a cadeia. Só o elo industrial projeta faturar quase R$ 50 bilhões no Brasil em 2023, 10,6% mais que no ano passado. Somado varejo e serviços, o setor alcançou pouco mais de R$ 60 bilhões no ano passado.
Trata-se de um ecossistema de negócios que reúne todos os tamanhos de empresas — de microempreendedores àquelas adquiridas por fundos internacionais — e que ultrapassa a venda de rações, coleiras e toda a espécie de apetrechos. O setor hoje vê, ainda, a expansão da prestação de serviços, um universo que inclui babás individuais, atendimento em creches e até oferta de planos de saúde.
“Ter um animal de estimação em casa é um hábito antigo. Mas notamos que nos últimos dez ou quinze anos ele [hábito] se expandiu em cidades maiores, como São Paulo, à medida que as pessoas optaram por ter menos filhos”, comenta José Edson de França, presidente da Abinpet.
A causa para a expansão da população de animais de estimação não é uma só. “Há vários fatores para esse crescimento. Eu evito fazer o paralelo com crianças porque são responsabilidades totalmente diferentes”, pondera Nelo Marraccini, presidente do conselho consultivo do IPB. O instituto representa o varejo.
“As famílias que têm menos filhos passaram a adotar ou comprar animais de estimação como companhia para as crianças, para que tenham uma infância mais saudável”, completa Marraccini. Além disso, diz, a população de idosos do país avança, e muitos deles também optam pela companhia de animais.
O presidente do IPB inclui no debate até mesmo as mudanças no comportamento religioso. Ele lembra que os gatos, por exemplo, sofriam muito preconceito no país no passado por serem atrelados ao “demônio” ou a algo ruim. Mas isso já mudou muito. “As pessoas têm muitas crenças”, continua. “Na minha família acreditava-se que as tartarugas ajudavam a melhorar a asma. E então eu tinha uma de estimação, que dormia debaixo da minha cama”, rememora.
Dos 168 milhões de “pets” brasileiros, conforme os dados 2022 da Euromonitor, 68 milhões são cães, 42 milhões são aves e 34 milhões são gatos. Há ainda 22 milhões de peixes ornamentais e 2 milhões de outros, como coelhos e roedores. A população de felinos teve alta recorde de 6% entre 2020 e 2021, indica o censo mais recente do IPB, com impacto do fator pandemia, época em que a adoção de animais cresceu acima da média.
Felizmente para os gatos, o tempo do preconceito ficou para trás, e eles vêm conquistando cada vez mais corações em todas as faixas etárias, sobretudo junto aos idosos. É que eles não demandam tanta atenção como os cães e têm menor porte, o que é melhor para quem mora em apartamentos, dizem os executivos do setor.
A ocupação de espaços cada vez menores, com a verticalização (aumento do número de edifícios) nas grandes cidades, é um ajuste ao processo de redução das famílias domiciliares, uma tendência que já ocorre há algumas décadas.
O conceito de “família domiciliar” para o IBGE considera apenas os membros da mesma família que dividem uma residência. Difere de conceitos sobre família de outras áreas de estudos, como a antropologia ou a sociologia, ressalva Márcio Minamiguchi, gerente de estimativas e projeções de população do IBGE.
O Censo de 2010 do IBGE, continua, mostrou naquele ano que, pela primeira vez, o país não tinha a predominância de participação das famílias que até então eram o perfil mais comum na sociedade. O retrato do casal com filhos representava menos de 50% da população. “E esse perfil familiar é cada vez menos predominante”, continua Minamiguchi. Em 2000, lembra, casais com filhos eram fatia maior, de 56,4% da população.
Hoje, a média de pessoas por residência é de menos de 3 moradores, com um crescimento de 34% do número de domicílios, para 90,7 milhões, segundo o Censo de 2022 divulgado em junho deste ano. “O retrato atual é fruto do ciclo de vida e das escolhas das pessoas”, conclui o pesquisador. O IBGE ainda vai divulgar até o próximo ano mais detalhes sobre o Censo populacional mais recente, o que incluirá informações sobre a faixa etária da população e o perfil de famílias.
Fonte: Valor