Apesar de a amizade parecer algo natural, raramente paramos para analisá-la. Como saber quando alguém será um bom amigo? Quando é hora de seguir em frente e encerrar uma amizade?
Muitas vezes, as pessoas confiam na intuição para responder a esse tipo de pergunta.
Na pesquisa em psicologia, não há uma definição universalmente aceita de “amigo”. Tradicionalmente, quando psicólogos analisam a amizade, costumam usar a lente da troca:
Quanto aquele amigo fez por mim? Quanto eu fiz por ele?
A ideia é que as amizades são transacionais — os amigos permanecem enquanto recebem pelo menos tanto quanto entregam no relacionamento.
Mas esse foco não captura o que muitos consideram a essência da amizade.
Nós e nossos colegas entendemos que outro modelo de relacionamento — o que chamamos de “compartilhamento de riscos” (risk-pooling) — combina melhor com a experiência das pessoas.
Nesse tipo de amizade, ninguém fica contabilizando quem fez o quê por quem.
Nossas pesquisas na última década sugerem que esse tipo de amizade foi essencial para que nossos ancestrais sobrevivessem aos desafios que enfrentavam.
E consideramos que ela continua essencial hoje, seja para atravessar dificuldades pessoais, seja para lidar com desastres naturais.
Foco no que os amigos “te dão”
A teoria tradicional da troca social vê as amizades como transações nas quais as pessoas registram custos e benefícios. A partir desse arcabouço, pesquisadores sugerem que avaliamos cada amizade com uma lista contínua de prós e contras para decidir se vale a pena manter o vínculo. Mantemos as amizades que trazem mais benefícios do que custos e encerramos as que não trazem.
A teoria sustenta que esse jogo de equilíbrio entra em ação quando tomamos decisões sobre que tipo de amizade buscar e como tratar nossos amigos. A ideia chegou até os espaços de autoajuda da psicologia popular.
Nós argumentamos que o maior problema da teoria da troca social é que ela ignora as sutilezas dos relacionamentos da vida real. Francamente, a teoria está errada: as pessoas muitas vezes não usam essa relação de custo-benefício em suas amizades.
Menos contabilidade, mais apoio
Qualquer pessoa que já viu um amigo passar por momentos difíceis — ou que já foi quem ofereceu apoio — sabe que ficar contabilizando o que um amigo faz por você não é o que define uma amizade. Amizade tem mais a ver com companhia, prazer e vínculo. Às vezes, é simplesmente sobre ajudar porque o amigo está precisando e você se importa com o bem-estar dele.
A teoria da troca social sugeriria que seria melhor se afastar de alguém que está passando por um tratamento de câncer ou enfrentando a morte de um familiar, já que essa pessoa não estaria oferecendo tantos “benefícios” quanto poderia. Mas as experiências reais mostram o contrário: são justamente nessas horas que muitas pessoas se dispõem mais a apoiar os amigos.
Nossas pesquisas são consistentes com essa intuição sobre as limitações da teoria da troca social. Quando perguntamos às pessoas o que elas buscam em um amigo, elas não atribuíram grande valor à ideia de ter alguém que se preocupe em “pagar dívidas” — algo considerado essencial do ponto de vista da troca social.
Outras características foram vistas como muito mais importantes — como lealdade, confiabilidade, respeito e estar presente nos momentos de necessidade. Essas qualidades ligadas ao compromisso emocional foram consideradas essenciais, enquanto “retribuir” foi visto como um luxo, algo que só importa depois que há um vínculo emocional verdadeiro.
Ter amigos que ajudam nos momentos difíceis, que se comprometem com a amizade e oferecem apoio emocional foi classificado como mais importante do que ter um amigo que “paga de volta”. Mesmo que nem sempre possam oferecer benefícios materiais, os amigos mostram que se importam de muitas outras maneiras.
É claro que a amizade nem sempre é positiva. Alguns amigos podem se aproveitar, pedindo demais ou negligenciando responsabilidades que poderiam assumir. Nesses casos, pode ser útil dar um passo atrás e avaliar os custos e benefícios.
A amizade é mais do que a soma de suas partes
Mas como, exatamente, as amizades ajudam as pessoas a sobreviver? Essa foi uma das perguntas que investigamos no The Human Generosity Project, uma colaboração de pesquisa interdisciplinar.
O padrão de amizade baseado em compartilhamento de riscos, e não em troca, foi encontrado em diversas sociedades — do kere kere, em Fiji, ao tomor marang, entre os Ik, em Uganda. Nessas culturas, as pessoas ajudam os amigos em momentos de necessidade sem esperar ser reembolsadas.
Entre os massais, um povo indígena do Quênia e da Tanzânia que vive da criação de gado, há uma tradição semelhante. Eles cultivam amizades com pessoas que os ajudam quando precisam, sem expectativa de retorno. Esses amigos especiais, chamados de parceiros osotua, só pedem ajuda quando estão realmente em necessidade — e ajudam quando são solicitados e têm condições de fazê-lo.
Essas parcerias não dizem respeito a favores cotidianos, mas a sobreviver a riscos imprevisíveis e potencialmente devastadores. As relações osotua são construídas ao longo da vida, transmitidas entre gerações e frequentemente marcadas por rituais sagrados.
Quando modelamos como essas relações funcionam ao longo do tempo, descobrimos que elas aumentam as chances de sobrevivência em ambientes voláteis, especialmente quando as pessoas pedem ajuda a quem tem mais probabilidade de poder ajudar. Essas amizades resultam em taxas de sobrevivência mais altas para ambos os parceiros, em comparação com relações baseadas em “acertar contas”.
Esses amigos funcionam como sistemas de seguro social uns para os outros, ajudando-se mutuamente diante de eventos imprevisíveis e incontroláveis.
E esse padrão aparece também nos Estados Unidos, assim como em sociedades menores e remotas. Em um dos estudos, focamos em pecuaristas do sul do Arizona e do Novo México, que participam de uma rede que eles chamam de neighboring (“vizinhança”). Eles não esperam ser pagos quando ajudam vizinhos em situações imprevistas — como acidentes, ferimentos ou doenças. Encontramos o mesmo padrão em um estudo online com participantes norte-americanos.
Por outro lado, observamos que pessoas como esses pecuaristas tendem a esperar retribuição quando a ajuda é relacionada a desafios mais previsíveis, como o trabalho de marcar o gado ou o pagamento de contas.
Seguro contra catástrofes, não troca de favores
O conjunto dessas pesquisas sugere que a amizade tem menos a ver com a troca de favores e mais com estar presente quando o imprevisível acontece. A amizade se assemelha mais a um plano de seguro emocional, que entra em ação quando é mais necessário, do que a um sistema de trocas equilibradas.
O que permite que essas parcerias durem não é apenas a generosidade, mas também a moderação e o senso de responsabilidade: os massais esperam que seus parceiros osotua cuidem de si mesmos sempre que puderem e peçam ajuda apenas quando realmente precisarem. Esse equilíbrio entre cuidado, respeito e autogestão oferece um modelo valioso.
Num mundo de incertezas crescentes, cultivar amizades baseadas em compartilhamento de riscos — e buscar ser um bom parceiro também — pode ajudar a construir resiliência. Nossos ancestrais sobreviveram graças a esse tipo de relacionamento; nosso futuro pode depender dele também.
Fonte: G1