Ofensas, xingamentos, acusações infundadas e demonstrações de preconceito. São situações que acompanham ou caracterizam os crimes de racismo e de injúria racial. O número de ocorrências desses casos teve uma forte alta no país ao longo de um ano, entre 2022 e 2023, como mostram os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, produzido e divulgado recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Os dados foram apurados em todo o país, junto aos dados das secretarias estaduais de Segurança Pública e Defesa Social. Segundo o Anuário, os registros de ocorrências de racismo em delegacias de polícia (seja por boletins de ocorrência ou inquéritos policiais) saltaram de 5.100 em 2022 para 11.610 em 2023, representando uma alta de 77,9%, enquanto que os de injúria racial subiram de 12.237 para 13.897 no mesmo período.
O comportamento dos casos em cada estado brasileiro chama ainda mais atenção. De acordo com o Anuário, os maiores crescimentos dos crimes de injúria racial entre 2022 e 2023 foram registrados no Rio Grande do Norte (1.900%), no Tocantins (900%), no Pará (53,9%) e em Santa Catarina (51,7%), enquanto que os de racismo se deram no Paraná (630%), no Rio Grande do Norte (345,7%), no Mato Grosso do Sul (342,6%) e no Maranhão (319,6%). E o único que teve queda nos registros de racismo foi o de Rondônia (-4,3%). Já os de injúria diminuíram apenas em Roraima (-31,3%), Goiás (-38,1%), Paraná (-76,1%), Ceará (-48,2%) e Maranhão (-8,5%).
“A nosso ver, esse aumento estaria diretamente associado à conscientização da população, à divulgação crítica dos casos de racismo por parte dos meios de comunicação e à reprovação social, que, em conjunto, têm incentivado as vítimas a colocarem essa questão na pauta do dia e a buscarem, incondicionalmente, por seus direitos nas esferas cível e criminal”, considera o professor-doutor Eduardo Santiago Pereira, do curso de Direito da Universidade Tiradentes (Unit).
Um caso mais peculiar é o da Bahia, estado no qual 80,8% da população se autodeclara preta ou parda. Segundo o Anuário do FBSP, as ocorrências de injúria racial registradas entre 2022 e 2023 foram de 840 para 884, enquanto que as de racismo pularam de 361 para 552, com variação de 52,9%. E foi justamente a Bahia que puxou uma alta inédita nos dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre os processos judiciais abertos por injúria racial. Entre 2020 e 2023, foram 4.049, perfazendo um aumento de 647%. O resultado local puxou a alta nacional: que foi de 610% (dos 675 processos de 2020 para 4.798 no ano passado).
De acordo com Eduardo Santiago, os números históricos já indicavam a força dos problemas raciais na Bahia, principalmente quando se analisa a questão racial a partir dos indicadores econômicos e sociais, que apontam uma profunda desigualdade de classes. “Desta feita, note-se que os números, comparativos, entre a população negra e branca, são avassaladores em todos os estados brasileiros, sendo ainda mais preponderantes em terras baianas”, diz ele, pontuando que estes problemas são reflexo das relações de poder, político e econômico, da valorização histórica, organização cultural e da divisão do espaço e do papel que cada grupo social e racial ocupa na estrutura da sociedade brasileira. “Enquanto tais relações continuarem sendo regidas pela mesma lógica, dificilmente teremos alteração, de fato, nesse status quo”, acrescenta.
Crimes e punições
A legislação brasileira estabelece uma diferenciação nos conceitos jurídicos dos dois crimes. A injúria racial, segundo o artigo 140 do Código Penal, é um “crime contra a honra subjetiva da vítima” e se caracteriza quando alguém ofende a dignidade ou o decoro da vítima, em razão de sua raça, cor, etnia ou procedência nacional, com o intuito de desmerecer, ridicularizar, diminuir ou de menosprezar. Já o racismo, conforme a Lei Caó (7.716/1989), atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça, e engloba todos os crimes relacionados ao preconceito.
“Deve-se entender que o crime de injúria, na verdade, constitui-se em uma espécie do gênero denominado de racismo, não havendo qualquer tipo de diferença entre eles, muito pelo contrário. Portanto, resumidamente, podemos dizer que todas as condutas, previstas na legislação penal, que tenham no seu âmago aspectos inerentes à raça, cor, etnia ou procedência nacional, e acrescento também a religião, serão caracterizadas como Crimes de Raciais ou Crimes de Racismo”, explica o professor.
Esta correlação gerou uma mudança importante: a Lei 14.532/2023, sancionada em janeiro de 2023, igualou a injúria racial ao crime de racismo, aplicando as mesmas punições previstas pela Lei Caó: penas entre 2 e 5 anos de prisão, além do pagamento de multa. “A partir da Constituição de 1988, já se definia que a prática do racismo deveria ser classificada como crime, e não apenas como contravenção penal, conforme ocorria até então. Além disso, determinou-se que tais condutas passariam a ser punidas com pena de reclusão e classificadas como imprescritíveis e inafiançáveis”, contextualiza Santiago.
Fonte: Asscom Unit