“Momento Sputnik”: esta foi uma das expressões usadas pelo mercado para resumir a reviravolta causada em poucos dias pelo DeepSeek, o rival chinês do ChatGPT.
A nova versão do robô conversador (chatbot) foi lançada ao público no dia da posse de Trump, 20 janeiro. Em uma semana, fez empresas gigantescas de tecnologia perderem US$ 1 trilhão na bolsa de Nova York, ao ultrapassar o ChatGPT em número de downloads nos EUA, na loja de aplicativos da Apple.
O que faz analistas e investidores compararem a novidade chinesa ao lançamento do satélite soviético Sputnik, em 1957, que pegou os americanos de surpresa e deu origem à corrida espacial durante a Guerra Fria?
Parte do que preocupa observadores da indústria de tecnologia dos EUA é a ideia de que a startup chinesa está emparelhando com empresas americanas na corrida pelo domínio da inteligência artificial, só que com gastos bem menores.
O DeepSeek tem sido descrito como um ChatGPT de baixo custo. Pesquisadores da startup disseram que o investimento para treinar o chatbot chinês foi de US$ 6 milhões (cerca de R$ 35 milhões), uma quantia que parece irrisória frente aos bilhões de dólares gastos por empresas americanas.
Gigantes do setor treinam seus robôs de IA com supercomputadores que usam cerca de 16 mil chips, enquanto os engenheiros da DeepSeek disseram ter precisado de apenas 2 mil chips para realizar a mesma tarefa, informou o jornal The New York Times.
O custo muito inferior fez investidores questionarem a sustentabilidade de gastos no setor, daí as perdas na bolsa, que se concentraram sobre as “big techs”.
A Meta, por exemplo, que recentemente incluiu sua IA em aplicativos como o WhatsApp, anunciou na última sexta (24) que prevê investir até US$ 65 bilhões (R$ 383 bilhões) neste ano no segmento, 50% a mais que em 2024.
“Este ano será definidor para a IA”, afirmou o presidente da empresa, Mark Zuckerberg.
Os chineses, por sua vez, tiveram que buscar alternativas por não terem à disposição os chips mais avançados para IA, ao contrário de empresas como a Meta e da OpenAI, criadora do ChatGPT.
Isso porque, em 2022, sob o governo de Joe Biden, os EUA restringiram as exportações desses equipamentos para o país asiático. As limitações deveriam ser seguidas pela Nvidia e pela AMD, líderes globais em produção de chips para IA.
“Isso fará os chineses retrocederem anos”, disse, na época, Jim Lewis, especialista em tecnologia e segurança cibernética do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), em Washington. Ele afirmou que as políticas remontavam aos rígidos regulamentos do auge da Guerra Fria.
Mas a fama repentina do DeepSeek está levando ao questionamento da eficácia dessas medidas. E colocou em dúvida o domínio ocidental no setor.
A inteligência artificial apareceu nos primeiros atos do novo governo Trump. Ele revogou a criação de padrões de segurança assinada por Biden e anunciou um investimento privado de até US$ 500 bilhões para a construção de infraestrutura para IA no Texas.
O projeto chamado de Stargate foi definido pelo presidente dos EUA como “o maior de infraestrutura de IA da história”.
Mas foi um dos conselheiros de Trump, o investidor de risco do Vale do Silício Marc Andreessen, que classificou a chegada do DeepSeek como “o momento Sputnik da inteligência artificial”.
“O DeepSeek é um dos avanços mais impressionantes que eu vi em toda minha vida”, postou Andreessen.
“O que nós descobrimos é que o DeepSeek tem melhor desempenho, ou pelo menos igual, aos melhores modelos americanos”, postou Alexandr Wang, da Scale AI, fornecedora de treinamento de inteligência artificial para gigantes como OpenAI, Google e Meta.
Wang disse no X que o DeepSeek representa um “alerta” para os EUA, que fez todos os grandes avanços em IA até então, mas não deve alterar o controle sobre a exportação de chips.
Domínio em risco
O crescimento da DeepSeek é um momento importante porque coloca em xeque a ideia de que os EUA vão manter sua liderança global por meio da infraestrutura de inteligência artificial, afirma o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Álvaro Machado Dias.
Mas a disputa com a China não deve seguir os mesmos moldes da Guerra Fria, em que o mundo se dividiu entre aliados dos EUA e da União Soviética. Isso porque os outros países não devem apoiar esse modelo, avalia Machado Dias.
“Está muito mais no interesse americano criar essa dicotomia do que no interesse chinês. Os chineses não querem Guerra Fria nenhuma. Pelo contrário: eles querem ter os Estados Unidos como parceiro comercial, estratégico, tecnológico”, afirma.
A possibilidade dos EUA perderem a liderança no domínio da IA para a China pode ter consequências geopolíticas relevantes, segundo Anderson Soares, coordenador Centro de Excelência em IA da Universidade Federal de Goiás (CEIA-UFG).
“Estamos falando de uma tecnologia generalista que tem se apresentado como o grande combustível da nova Revolução Industrial. Ela está presente em todos os eletrônicos usados hoje e dominá-la significa ter produtos melhores e mais baratos e, consequentemente, ter mais poder e influência”, descreve.
Mudança no mercado
O feito da China em produzir modelos de inteligência generativa avançados com menos recursos pode contribuir, inclusive, com a expansão desse mercado para além das duas potências, destaca Evandro Barros, fundador da Data-H, empresa de tecnologia com base no Canadá.
“Caso algum laboratório na Europa ou na América Latina atinja o mesmo resultado, isso vai mudar completamente a visão do mercado de IA e teremos uma desvalorização ainda mais agressiva das ações empresas que hoje dominam o setor”, diz.
Alguns analistas acharam a reação do mercado exagerada. “Os modelos que eles (DeepSeek) constroem são fantásticos, mas não são milagrosos”, observou Stacy Rasgon, da consultoria Bernstein, que acompanha a indústria dos chips.
O analista também questionou se a DeepSeek realmente gastou o montante informado. “A DeepSeek realmente montou uma OpenAI com US$ 5 milhões? Claro que não”, disse à Reuters.
“Parece algo forçado, para dizer que as inovações lançadas pela DeepSeek são completamente desconhecidas pelos maiores pesquisadores de outros inúmeros laboratórios do setor em todo o mundo.”
Além disso, o DeepSeek têm limitações em relação aos seus semelhantes americanos, aponta Carlos Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-RIO).
“Ele não conseguir extrair informações de imagens e raciocina em cima delas, que é um atributo que o como o ChatGPT e o Grok [IA do X], conseguem fazer”, diz Souza.
“De qualquer forma, com o DeepSeek, a China começa a mostrar o que um modelo chinês é capaz de fazer”, pontua. “Até 2030, o país tem o plano de conseguir supremacia tecnológica global e o reloginho da segunda metade da década já começou a correr”.
Fonte: G1