A fome e a má nutrição afetam milhões de pessoas no Brasil e no mundo. De acordo com o Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Fome no Mundo de 2023, cerca de 733 milhões de brasileiros enfrentam insegurança alimentar. Regiões como o Nordeste são as mais atingidas, convivendo com altos índices de pobreza e desnutrição. Esse cenário ressalta a urgência de uma regulamentação mais robusta para a alimentação saudável como uma política pública, visando não apenas assegurar a segurança alimentar, mas também combater o avanço de doenças crônicas relacionadas à má alimentação, como a obesidade e diabetes.
Segundo a nutricionista e preceptora de Nutrição Social da Universidade Tiradentes (Unit), Surya Escobar, o Brasil já possui leis que regulam a alimentação saudável, como a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Essas iniciativas têm como objetivo controlar os preços, oferecer incentivos fiscais à produção de alimentos saudáveis e promover a distribuição de renda. “Acredito que o mais relevante no momento seja uma revisão da regulamentação existente, que está desatualizada, além de novas políticas que enfrentem com mais eficiência os alimentos não saudáveis, aqui considerados os ultraprocessados”, afirma.
Um dos grandes desafios atuais está na adoção de hábitos alimentares inadequados, com cerca de 30% da alimentação dos brasileiros composta por produtos ultraprocessados. “Diversas pesquisas comprovam os malefícios desses produtos no aumento da obesidade e outras doenças crônicas”, alerta. A nutricionista também destaca que a presença desses produtos na dieta infantil é especialmente preocupante, visto que doenças crônicas como diabetes e hipertensão estão surgindo cada vez mais cedo. “O impacto disso, em alguns anos, pode ser catastrófico para a saúde pública”, acrescenta.
O papel da regulamentação
Para conter o avanço dessas doenças, é necessário mais do que regulamentar alimentos; é preciso repensar todo o sistema alimentar, o que inclui desde a distribuição de terras até a redistribuição de renda para as camadas mais vulneráveis. No entanto, até lá, Escobar sugere que a regulamentação dos ultraprocessados seja uma prioridade nas políticas públicas de alimentação. Uma proposta seria incluir esses produtos no imposto seletivo da atual reforma tributária no país.
“Atualmente, apenas bebidas açucaradas, como refrigerantes, estão incluídas na proposta de imposto seletivo. Isso pode ser considerado um retrocesso para a sociedade. Temos exemplos de países onde se alimentar de forma saudável é tão caro que até a regulamentação se torna complicada, pois como taxar os alimentos acessíveis para os mais pobres? No entanto, no Brasil, ainda há tempo para reverter essa situação. O problema é que estamos perdendo essa batalha. E, no futuro, isso prejudicará a todos”, questiona.
A regulamentação da alimentação saudável precisa ser abordada de forma interdisciplinar, envolvendo áreas como saúde, educação e economia. Surya acredita que a conscientização da sociedade é crucial para pressionar o poder público a tomar decisões mais acertadas nesse campo. “A interdisciplinaridade deveria começar nas escolas, envolvendo pais e professores, e se expandir para todos os setores: lares, escolas, mídia e universidades”, sugere.
A especialista também destaca a ausência de fiscalização em ambientes que deveriam proteger as crianças, como as escolas, onde muitas vezes alimentos ultraprocessados são permitidos. “Não podemos mais aceitar que qualquer produto considerado comestível seja vendido como alimento. A simples regulamentação de rotulagem não é suficiente. Estamos vulneráveis a interesses econômicos que lucram com o adoecimento da população. Para combater o lobby da indústria, é crucial, antes de tudo, conscientizar as pessoas. Sem uma demanda clara da sociedade, será difícil mudar esse cenário no campo político”, prevê.
Impactos e exemplos internacionais
A regulamentação da alimentação saudável traria benefícios não apenas para a saúde pública, mas também para setores como a agricultura familiar, responsável pela produção de alimentos in natura. “Se a população adoece mais, há uma série de perdas que afetam a todos. Menos pessoas ativas implicam em maiores gastos com saúde pública e previdência”, reflete Escobar. Ela enfatiza que os mais pobres seriam os principais beneficiados com políticas que incentivassem o consumo de alimentos saudáveis e diminuíssem o consumo de ultraprocessados, ajudando também a reduzir as desigualdades sociais.
Políticas de controle sobre a adição de sal, açúcar e gorduras trans já estão em vigor em diversos países e podem servir de exemplo para o Brasil. No entanto, Escobar ressalta que o país tem uma vantagem: sua dieta tradicional, que inclui alimentos como arroz, feijão, frutas e verduras, já é naturalmente saudável, mas vem sendo cada vez menos consumida. Para reverter essa tendência, além de regulamentar, é fundamental promover campanhas educativas e criar incentivos para a agricultura familiar, que sofre com a pressão das grandes corporações de alimentos ultraprocessados.
“É essencial trazer essa discussão para espaços mais próximos da população. Critico, por exemplo, a falta de controle sobre o que as crianças levam para a escola. Em Sergipe e Aracaju, não existem leis que proíbam a entrada de alimentos ultraprocessados nas escolas, ao contrário de cidades como Niterói (RJ), que foi pioneira nesse tipo de controle. Não faz sentido termos boas políticas de alimentação escolar e, ao mesmo tempo, permitir refrigerantes nas escolas, que deveriam proteger as crianças e transmitir essa mensagem à sociedade”, aponta.
Conscientização
A regulamentação da alimentação saudável no Brasil envolve questões políticas, sociais e econômicas. Como destaca Escobar, a falta de vontade política é um dos principais entraves para a efetiva implementação dessas políticas. Além disso, é fundamental aumentar a conscientização da população sobre a seriedade dos problemas alimentares, tanto em nível local quanto global. Dessa forma, regulamentar a alimentação saudável como uma política pública não só melhoraria a saúde da população, mas também contribuiria para a redução das desigualdades sociais e para um futuro mais sustentável.
“Assumir a responsabilidade é fundamental, tanto como profissional da saúde quanto como cidadão. É importante estar informado sobre as políticas existentes, cobrar ações de seus representantes e avaliar se suas propostas favorecem a sociedade ou beneficiam grandes corporações. Dar o exemplo é essencial, valorizando a alimentação tradicional brasileira e utilizando o Guia Alimentar para a População Brasileira como referência na saúde pública. Em suma, é crucial reconhecer a gravidade da crise nos sistemas alimentares”, finaliza.
Fonte: Asscom Unit