ARACAJU/SE, 31 de outubro de 2024 , 14:38:39

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‘Sober shaming’: o que é a prática de constranger quem largou o álcool

 

Substância mais usada ao redor do planeta, os efeitos do álcool na saúde não passam despercebidos: 400 milhões de pessoas vivem com transtornos ligados à bebida, e 2,6 milhões morrem a cada ano por causa dela, segundo os últimos dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda assim, quem evita o consumo é visto como diferente e enfrenta um estigma diário por repensar um hábito enraizado na sociedade.

Essa é a realidade por trás de um novo termo, que tem se popularizado nas redes sociais, o “sober shaming”. Traduzida para algo como “humilhação dos sóbrios”, a expressão faz referência a uma prática que tem como alvo quem deixa de beber. Ao diminuírem — ou cortarem completamente — o consumo de álcool, essas pessoas são constrangidas por conhecidos que bebem.

“O consumo de álcool, principalmente na cultura ocidental e brasileira, faz parte de um comportamento ritualizado e esperado. Ele tem uma base de socialização muito grande que torna um grande desafio para quem quer reduzir ou parar o consumo. E existe uma grande pressão mercadológica, temos grandes empresas de álcool que estimulam o tempo inteiro o consumo. E frente às pressões do mundo trabalho, do estudo, do dia a dia corrido, o álcool acaba virando um instrumento para aliviar a tensão”, diz Telmo Ronzani, vice-reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e psicólogo líder do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Drogas (Crepeia).

Um novo levantamento realizado pela consultoria de pesquisa e estratégia Go Magenta com mil brasileiros apontou que 62% dos consumidores já pensaram alguma vez em diminuir a ingestão de álcool. Dos que conseguiram, 68% afirmam ser recorrentemente questionados sobre o porquê. Além disso, 49% se sentem desconfortáveis em precisar se explicar e 34% consideram que essa é a principal barreira para a moderação do consumo.

“Nós acabamos sendo os maiores algozes daqueles que querem moderar o consumo. O álcool é a única droga que você precisa se justificar por não usar. Perguntamos se a pessoa está grávida, se ela está doente, e às vezes não pensamos o quanto essas perguntas podem ser íntimas e constrangedoras. A pessoa pode estar tomando algum remédio e não querer falar sobre aquilo, pode ter um episódio perto de alguém com dependência”, afirma Gabriela Terra, fundadora da consultoria.

E quando o motivo é apenas não querer, a educadora e mestranda em Artes Clarice Saisse, de 26 anos, acredita que também há uma dificuldade de as pessoas entenderem. No início, a carioca evitava o álcool por questões religiosas, mas com o tempo decidiu continuar sem beber somente por não ter gostado da bebida:. “Em qualquer círculo social, no trabalho, com amigos, existe sempre essa curiosidade do porquê eu não bebo. Mesmo que eu explique o motivo, as pessoas não entendem, parece que fica faltando uma informação. Quando a questão religiosa era um motivo, sinto que era um “argumento” mais aceitável. Mas o apenas não querer é muito difícil de as pessoas entenderem.”

A especialista em inteligência de mercado Giulia Wegbrayt, de 29 anos, também relata que a decisão de não beber é recebida com estranheza. A moradora de São Paulo, capital, tinha o hábito de consumir bebida alcoólica até pouco antes da pandemia, quando começou a refletir se fazia aquilo pela pressão dos outros ou porque realmente gostava. “Todo mundo bebe, você sai para a festa e é o padrão. Mas fui ficando mais velha e percebendo que não gosto de álcool, não gosto como me sinto. Hoje meu máximo é uma taça de vinho em ocasiões especiais. Mas tem sempre uma pressão do “bebe um pouco”, “acompanha a gente”. Sempre tem uma pergunta, uma piadinha. É tão enraizado que as pessoas precisam do álcool para se divertir que elas ficam surpresas, “como assim você não precisa”.”

Os especialistas apontam que de fato um dos principais fatores que causam esse incômodo é que a mudança de hábito alheia leva à autorreflexão sobre os próprios padrões de consumo. Para 70% dos entrevistados pela Go Magenta, a abstenção do outro provocou um questionamento sobre si mesmo. “Quando alguém reduz o consumo instiga as pessoas ao redor a refletirem sobre assunto e isso é incômodo. A pessoa vê um amigo e pensa “será que eu também deveria diminuir a bebida, será que ela está me fazendo mal?”. Gera uma provocação”, diz Mariana Thibes, doutora em sociologia e coordenadora do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA).

Carolina Costa, psiquiatra da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), avalia que muitas vezes deixar de beber pode ser interpretado como uma “quebra de fiedlidade”. “Existe um ponto que é a identidade de grupo. Você não consumir álcool pode parecer uma quebra de fidelidade, como não fazer mais parte do grupo. A cultura latinoamericana, especificamente, não tem muito o que chamamos de diferenciação sistêmica, que é o ser diferente e pertencer mesmo assim. Nós tendemos mais ao emaranhamento, você precisa fazer tudo o que os outros fazem para ser aceito no grupo.”

Thibes acrescenta ainda que há grupos mais vulneráveis a essa pressão do “sober shaming”. “Algumas pesquisas mostram que há perfis mais suscetíveis, como jovens e homens, porque o consumo de álcool também é muito atrelado à masculinidade hegemônica. Para muitos, faz parte do “ser homem” aguentar altas quantidades de bebida.”

Para os jovens, álcool perde o apelo

A popularização do “sober shaming” ocorre no momento em que as gerações mais novas têm diminuído o consumo de bebidas alcoólicas. Recentemente, o ator britânico Tom Holland, conhecido por protagonizar os filmes da franquia “Homem-Aranha”, entre outros longas de sucesso, lançou uma marca de cerveja zero álcool, a Bero, dois anos depois de aderir à sobriedade.

Em entrevista à revista Forbes, Holland contou que era “o tipo de pessoa que, quando tomava uma cerveja, não conseguia tomar apenas uma”. Inicialmente, ele participou do Janeiro Seco, um desafio de passar o primeiro mês do ano longe do álcool. Porém, a empreitada foi mais difícil do que imaginava – foi quando percebeu que tinha uma relação problemática com a bebida.

Fonte: O Globo2

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