ARACAJU/SE, 21 de fevereiro de 2025 , 15:06:48

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“Tomava 280 comprimidos por dia, agora são 295”, diz padre que descobriu doença ultrarara aos 45 anos

 

“Eu falo que eu tô sempre batendo meu recorde”, brinca do outro lado do telefone o padre Márlon Múcio, 52. O constante bom humor quase não deixa transparecer a gravidade da situação. “Antes tomava 280 comprimidos por dia, agora saltei para 295”, explica o sacerdote, que chegou a virar assunto no ano passado ao revelar justamente a quantidade astronômica de remédios que tomava. Mas a doença foi piorando, e os medicamentos aumentando. Hoje são eles que ajudam a mantê-lo vivo.

Portador de deficiência do transportador de riboflavina (RTD), ele se define como um caso “raro do raro do raro”: apenas 1 em um milhão são acometidos pela doença. No Brasil, só 15 pessoas já foram diagnosticadas com ela– todas estão em um grupo de WhatsApp criado pelo padre para poder ajudar com informações, dicas e acolhimento fundamentais para essas pessoas e seus familiares. O intuito é um só: evitar que outros passem pela mesma saga sofrida que ele travou a vida inteira em busca de diagnóstico e tratamento.

Atualmente as doses são administradas 10 vezes durante o dia. Não de comprimidos sólidos (“haja goela, né?”, ri o padre), é preciso abri-los e retirar apenas o pózinho, o que torna possível a deglutição. Para ajudar, algumas farmacêuticas já mandam os medicamentos assim, outra leva passou a vir em líquido.

Assim que os efeitos dos remédios começam a diluir, os sintomas pioram: uma grande fraqueza, o corpo mole a ponto de não conseguir segurar o pescoço, dificuldade em enxergar, ouvir e falar. “Mas a coisa mais difícil do mundo pra mim, as pessoas nem imaginam, é engolir saliva”, conta.

Segundo o Ministério da Saúde, pacientes com RTD têm falta de uma enzima que transporta vitamina B2 às células. É ela a responsável por estimular a produção de sangue e o metabolismo, que nos dá energia para viver.

“[A doença] pega os músculos da audição, visão, locomoção, fala, mastigação, deglutição e respiração. Foi pegando um pouquinho de cada, mas alguns um pouco mais, como é o caso da respiração. Sou traqueostomizado e uso respirador eletrônico 24 horas por dia”, relata o padre.

O início dos sintomas e a dúvida médica

O mais comum é que os sintomas de deficiência e o agravamento deles acometem o paciente ainda jovem. No caso do padre Márlon foi um pouco diferente. Os sinais vieram espaçados durante toda a vida. O primeiro foi a perda da audição dos dois ouvidos quando tinha só 7 anos. Depois, só aos 14 começou a desenvolver dificuldade para mastigar e engolir. Aos 27, a fadiga já era intensa. “Os fieis vinham confessar e eu não aguentava, dormia na frente deles.”

Pelo espaçamento dos sintomas, ficou ainda mais difícil identificar que Márlon sofria de uma doença rara. Passou por 100 profissionais da saúde e ninguém desconfiava. Ao todo, foram 6 diagnósticos errôneos: começou com a agora famosa síndrome de burnout, depois miastenia, miastenia congênita, seguido por canalopatia, doença de pompe e, por fim, doença mitocondrial.

Sem a análise correta, a doença avançava sem o tratamento adequado. De tempos em tempos, sua casa virava a UTI de um hospital. Os exames e consultas pareciam eternos e sem resultados. Diante da situação, o sacerdote quis desistir.

“Eu já tinha desistido de procurar saber o que eu tinha. Primeiro porque não tinha mais dinheiro, quem pagava tudo era a Igreja. Segundo, eu estava cansado de repetir sempre a mesma história. Principalmente por causa da falta de compaixão. Teve gente que disse que era coisa da minha cabeça, que eu queria chamar atenção, que era frescura. Me sugeriram até um exorcista, e eu procurei um. Mas quando cheguei lá ele riu e falou: ‘eu que preciso da sua benção, padre’”.

Foi nesse momento que, após uma grande pesquisa mais efetiva do próprio padre que durou 9 anos atrás de saber o que tinha, que um geneticista surgiu em seu caminho. O Instituto Vidas Raras sabendo da condição dele, pagou uma consulta com o médico. Cansado de tentar, ele não foi. Após insistência da organização, decidiu ceder.

Já no início da conversa com o médico, tudo se mostrou diferente, encontrou acolhimento no profissional, o que acabou fazendo toda diferença. Diversos exames que ele nunca tinha feito na vida foram realizados, seu material genético foi analisado nos Estados Unidos e, enfim, a resposta veio: Márlon tem uma mutação genética no gene SLC52A3, o que provoca a síndrome.

“Eu já tinha 45 anos. Estava junto com mamãe quando ele deu a notícia. Nós caímos em pranto, chorávamos muito. O médico ficou preocupado e falou: ‘calma, não é o fim’. E eu respondi que, na verdade, era um choro de alívio. Finalmente eu tinha descoberto o que eu tinha”, conta.

Hospital para os raros

Nascido em Carmo da Mata (MG), a família de Márlon se mudou para São Paulo quando ele ainda tinha só 9 meses. Profundamente católicos, frequentavam sempre as missas e eventos da igreja. O próprio Márlon virou coroinha aos 7 anos, mas a vontade de entrar para o sacerdócio ainda não existia. Ele queria mesmo era ser médico para poder cuidar das pessoas. Com 18 anos, conseguiu passar em medicina na USP (Universidade de São Paulo), o mais concorrido do país.

“Na mesma ocasião, eu estava em uma missa e Jesus falou no meu ouvido que eu iria ser médico sim, mas de alma. Que eu ia ser padre. Ele mudou minha trajetória e hoje eu sou extremamente feliz”, diz. Mas quis o destino que a vocação para a medicina não fosse perdida.

Quando descobriu que era portador de uma doença rara, o desejo de ser médico e ter um hospital aflorou. E ele deu vasão. Juntou um grupo de 10 pessoas, entre eles alguns de seus médicos, e jogou a ideia: queria construir um hospital especializado em raros. Dito e feito: em dezembro de 2023 inaugurou a Casa de Saúde Nossa Senhora dos Raros, o primeiro do tipo no Brasil.

Em março de 2024, começaram os atendimentos. De lá até janeiro de 2025, 1.040 pessoas foram atendidas no local, vindas de todos os estados do Brasil e de mais três países: Estados Unidos, Itália e Portugal. Com atendimento integral e 100% gratuito, o hospital funciona dividido em diagnóstico, tratamento, informação e pesquisa. E não só o paciente recebe cuidados, há também atenção especial para a família.

“No caso do raro, quem sabe mais sobre ele não é o médico, é a mãe. Hoje, em 80% dos casais que tem filho raro, o marido vai embora, não segura a barra e a mãe acaba fazendo tudo. Então a gente acolhe essas pessoas, celebra a vida, mantém um ambiente acolhedor, com carinho. É a medicina humanizada”.

Para manter o hospital – que fica no centro de Taubaté (SP), para onde padre Múcio se mudou há 25 anos –, ele teve uma ideia que muitos consideraram uma piada. Decidiu criar a campanha “um real para um hospital”, em que as pessoas doam R$ 1 por mês (ou por dia, o que cada um conseguir). Assim consegue não só manter o prédio, como tem planos de construir outro de 3 andares que funcionará como um anexo para aumentar a disponibilidade dos atendimentos.

Também há o dinheiro que vem da venda do livro que narra sua trajetória de vida, de palestras e do documentário lançado no final do ano passado, Milagre Vivo. Para isso, alguns sacrifícios são demandados do padre, como, por exemplo, quando precisou encarar uma maratona para divulgar seu filme. Chegou a estar em 3 estados diferentes durante uma semana – um grande esforço que ocasionou a piora dos sintomas.

Mas, como padre Márlon diz, sua fé avança mais que a doença. E seus ideais humanitários falam mais alto. “Eu só quero me tratar para servir a Deus e os irmãos. Meu único sentido de lutar para viver, mesmo tomando quase 300 comprimidos por dia, é esse. O raro no Brasil é invisível, mesmo apesar de sermos 13 milhões de brasileiros, que é a mesma população de pessoas com diabetes ou moradores de São Paulo”.

Como ajudar

Casa de Saúde Nossa Senhora dos Raros
Taubaté, São Paulo
PIX: hospital@sedesantos.com.br

Fonte: GQ

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