O presidente dos EUA, Donald Trump, afirmou nesta terça-feira (4) que o governo americano “assumirá controle” da Faixa de Gaza no processo de reconstrução do enclave, após quase um ano e meio de guerra. Ao lado do premier israelense, Benjamin Netanyahu, ele ainda defendeu que os quase 2 milhões de palestinos que vivem no enclave sejam realocados, de forma permanente, em outros países, avançando em um plano apresentado por ele na semana passada. As declarações podem pôr em risco o cessar-fogo acordado entre Israel e o grupo terrorista Hamas, que Trump disse “querer assegurar que seja eliminado”.
Em entrevista coletiva após a reunião com Netanyahu, Trump surpreendeu ao afirmar que os EUA assumirão o controle de Gaza, sem descartar o emprego de tropas americanas em solo palestino.
— Os EUA tomarão conta da Faixa de Gaza e nós também faremos um trabalho ali — disse Trump. — No que diz respeito a Gaza, faremos o que for necessário. Se for necessário [enviar tropas], faremos isso.
Trump não deixou nada claro na anunciada ocupação de Gaza pelos americanos, mas nos poucos detalhes que ele apresentou, disse que os EUA poderiam atuar no desmantelamento de bombas, na demolição de prédios destruídos e “criar um desenvolvimento econômico que forneceria empregos ilimitados e habitação para as pessoas da região”. Ele não revelou quem seriam os moradores beneficiados pela presença americana, tampouco quais seriam as bases legais para a presença americana no enclave, ou se colonos israelenses serão admitidos de volta em Gaza. Ele disse que Gaza — onde 47 mil pessoas morreram nos bombardeios israelenses e, segundo a ONU, mais de dois terços das edificações foram destruídas — pode ser tornar “a Riviera do Oriente Médio”.
— A matança começa e todos os outros problemas começam, e você acaba no mesmo lugar. E não queremos ver isso acontecer — afirmou. — Acho que seremos grandes guardiões de algo que é muito, muito forte, muito poderoso e muito, muito bom para a área, não apenas para Israel, para todo o Oriente Médio.
Trump, ao responder à pergunta de uma jornalista, afirmou que a presença americana em Gaza seria “a longo prazo”, e garantiu que a proposta foi discutida nos mais elevados escalões, dentro e fora dos EUA, recebendo “muitos elogios”. Sem dar datas, afirmou que visitará Gaza, assim como outros países da região. A ocupação de território no Oriente Médio pelos EUA seria uma reviravolta dramática para Trump, que em 2016 fez campanha prometendo tirar o país de imbróglios locais após a guerra no Iraque e criticou seus antecessores por tentativas de “construção de nações” na região.
— A única razão pela qual os palestinos querem voltar para Gaza é que eles não têm alternativa — disse Trump. — Faremos o que for necessário.
Pouco antes da reunião entre os dois líderes, Trump, afirmou a jornalistas que os palestinos de Gaza vivem “como se estivessem no inferno”, mas que “adorariam sair de Gaza”, e ficariam “encantados” longe de seus lares, de forma permanente. Ele citou nominalmente a Jordânia e o Egito como potenciais destinos para os palestinos, além de “outros países” da região.
— Não acho que as pessoas deveriam voltar para Gaza. Acho que Gaza tem sido muito um lugar de má sorte para elas. Gaza não é um lugar para as pessoas viverem — disse Trump, ao lado de Netanyahu. — Espero que possamos fazer algo para que eles não queiram voltar, que não queiram voltar, eles não experimentaram nada além de morte e destruição.
Ao lado de Netanyahu, no Salão Oval, ele afirmou que há interessados em participar da reconstrução, sem citar nomes. Trump disse ainda que consegue imaginar uma “bela área para reassentar pessoas permanentemente em boas casas e onde elas podem ser felizes e não ser baleadas, mortas ou esfaqueadas até a morte”.
— Gaza é uma garantia de que eles vão acabar morrendo. A mesma coisa vai acontecer de novo, de novo e de novo — afirmou.
O presidente americano havia sugerido a realocação de parte dos palestinos de Gaza no mês passado, o que gerou pesadas críticas de governos da região e organizações internacionais. Contudo, as declarações desta terça-feira soaram como um passo além, levantando questões de lei internacional e também de interesse comercial.
No ano passado, o genro de Trump e seu ex-conselheiro de política externa, Jared Kushner, disse em entrevista que “as propriedades da orla de Gaza poderiam ser muito valiosa… se as pessoas se concentrassem em construir meios de subsistência”. Ele afirmou que, se pudesse, “faria o meu melhor para tirar as pessoas dali e depois limpar”. Kushner, encarregado de moldar um plano de paz para a região no primeiro governo de Trump, sugeriu na mesma entrevista que os palestinos fossem realocados para o Deserto de Negev, no sul de Israel. Na entrevista coletiva desta terça-feira, Trump afirmou que a “nova Gaza” vai atrair pessoas de todo o mundo, “inclusive palestinos”.
Até agora, governos locais têm rejeitado de maneira categórica a proposta, e o representante palestino nas Nações Unidas, Riyad Mansour, disse que “para aqueles que querem enviar o povo palestino para um ‘lugar legal’, permitam que eles voltem para suas casas originais no que é agora Israel”.
— O povo palestino quer reconstruir Gaza porque é aqui que pertencemos — acrescentou.
Sami Abu Zuhri, representante do Hamas, afirmou em comunicado que a declaração de Trump é “uma receita para criar caos e tensão na região”, e que “o que é necessário é o fim da ocupação e agressão contra nosso povo, não sua expulsão de suas terras”. Citado pela AFP, Izzat al-Rishq, dirigente do grupo, também criticou Trump por seus últimos comentários, dizendo que “nosso povo em Gaza frustrou planos de deslocamento e deportação sob bombardeio por mais de 15 meses”.
“Eles estão enraizados em suas terras e não aceitarão nenhum esquema que vise arrancá-los de sua terra natal”, concluiu.
De acordo com as Convenções de Genebra, “as transferências forçadas individuais ou em massa, bem como as deportações de pessoas protegidas do território ocupado para o território da Potência Ocupante ou para o de qualquer outro país, ocupado ou não, são proibidas, independentemente do seu motivo”. Em novembro do ano passado, a Human Rights Watch afirmou que os deslocamentos forçados internos de palestinos, ordenados por Israel, dentro da Faixa de Gaza correspondiam a um crime de guerra.
Por outro lado, a proposta recebeu elogios alguns dos integrantes mais radicais da coalizão de governo de Netanyahu. Na entrevista coletiva, o presidente afirmou que deve emitir uma opinião sobre a soberania de Israel na Cisjordânia “em até quatro semanas”, abrindo caminho para mais uma onda de condenações e discussões no cenário internacional.
Pressão por cessar-fogo
Mas antes de pensar no futuro de Gaza, Trump quer pressionar o premier israelense a se comprometer com a trégua firmada há pouco mais de duas semanas. O republicano afirma que a suspensão dos combates foi obra de seu governo, embora a maior parte das negociações tenha ocorrido sob seu antecessor, Joe Biden. Quando Netanyahu foi questionado sobre qual presidente deveria receber maior crédito pelo acerto, disse que era Trump.
— Acho que o presidente Trump adicionou grande força e liderança poderosa a esse esforço — disse o líder israelense aos jornalistas. — Eu aprecio isso.
Netanyahu, afirmam fontes de seu governo, não quer se comprometer com a segunda etapa do plano, que prevê o retorno de todos os reféns, vivos ou mortos, e a saída de todos os militares israelenses de Gaza. Para analistas, se ele aceitar esses termos, sua coalizão poderá se desmantelar, e a saída do cargo seria apenas uma questão de tempo. Aos jornalistas na Casa Branca, ele tentou se esquivar de um compromisso claro com o plano.
— Apoio a libertação de todos os reféns e o cumprimento de todos os nossos objetivos de guerra, o que inclui destruir as capacidades militares e de governo do Hamas e garantir que Gaza nunca mais represente uma ameaça para Israel — disse o premier.
Na véspera da reunião, as negociações sobre a implementação da segunda fase começaram com um encontro entre Netanyahu e Wtikoff em Washington, uma mudança de última hora que parece ter relação com o desejo de Trump de se sentir no controle das conversas. Com isso, a margem de ação para o premier pode ser mais estreita do que gostaria.
— Os riscos são realmente altos para o primeiro-ministro, para ser claro — disse Thomas Nides, ex-embaixador dos EUA em Israel, ao New York Times. — O presidente Trump está segurando todas as cartas e está realmente claro que quer ver todos os reféns voltando para casa.
Apesar das diferenças sobre o desfecho da guerra, Trump quer reiterar a imagem de “amigo de Israel”, e trabalha junto a líderes do Congresso (comandado pelos republicanos) para liberar um pacote de armas de US$ 1 bilhão para Israel, de acordo com o Wall Street Journal. A lista inclui 4,7 mil bombas e escavadeiras usadas na demolição de casas e estruturas na Faixa de Gaza. Há um outro pacote, de US$ 8 bilhões, requisitado durante o governo Biden que aguarda análise do Congresso. Além das bombas, esse pedido inclui mísseis, artilharia e equipamento pesado, também usado em demolições. No mês passado, ele liberou o envio de bombas de 2 mil libras (907 kg) para Israel, derrubando um veto estabelecido pelo presidente Joe Biden.
Outro fator crucial ligado à guerra é a retomada do processo de normalização entre Israel e Arábia Saudita, visto como essencial para Netanyahu para “remodelar” o Oriente Médio, e considerado uma vitória diplomática histórica para o líder americano. Em seu primeiro mandato, ele supervisionou os processos de normalização de Israel com Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Marrocos e Sudão, e quer repetir o caminho com os sauditas.
Mas Riad condiciona a normalização ao estabelecimento de um Estado palestino, uma questão que está longe de ser pacificada em Israel, e sobre a qual Trump desconversou pouco antes de começar a reunião com Netanyahu, ao afirmar que “todo mundo busca a paz”.
Netanyahu ainda levou a Trump aquela que vê como “ameaça existencial”: o Irã, país com quem esteve à beira de uma guerra total no ano passado, que envolveu, além da retórica, assassinatos políticos, ataques aéreos e o lançamento de centenas de mísseis de lado a lado. Na segunda-feira, o New York Times afirmou que, segundo a inteligência americana, cientistas iranianos estão desenvolvendo formas para acelerar o desenvolvimento de uma bomba atômica, caso a liderança local decida fazê-lo.
No ano passado, o governo Biden persuadiu Israel a não atingir instalações nucleares durante suas ações contra o Irã, e não está claro se, em um cenário similar, Trump apoiaria um ataque do tipo. Antes do encontro, o presidente americano assinou uma ordem determinando o retorno da política de “pressão máxima” contra Teerã, focada na aplicação mais dura de sanções já existentes e voltadas às exportações de petróleo do país.
A política foi adotada pela primeira vez em 2018, quando Trump rasgou um acordo internacional que previa o fim das punições econômicas em troca de limites ao programa nuclear do Irã, incluindo inspeções mais frequentes. Biden, ao contrário do que prometeu na campanha de 2020, não buscou a retomada do acordo, mas foi acusado pelos republicanos de ser leniente na aplicação das sanções e permitir que o Irã continuasse a vender petróleo.
Contudo, Trump se disse disposto a discutir a questão com as lideranças iranianas — o último diálogo entre presidentes dos dois países ocorreu em 2013, quando Barack Obama telefonou para Hassan Rouhani, pouco depois da Assembleia Geral da ONU. Netanyahu, por sua vez, é contrário a qualquer tipo de acordo com a República Islâmica.
— Veremos se podemos ou não arranjar ou trabalhar em um acordo com o Irã, e todos podem viver juntos, e talvez isso seja possível e talvez não seja possível. Então, estou assinando isso e não estou feliz ao fazê-lo, mas realmente não tenho muita escolha porque temos que ser fortes e firmes — declarou Trump ao assinar as medidas.
Fonte: O Globo com AFP e The New York Times