A Ucrânia registrou os primeiros grandes protestos antigovernamentais desde o início da guerra, em 2022. Manifestantes tomaram as ruas após uma lei sancionada pelo presidente Volodymyr Zelensky para controlar agências anticorrupção.
As multidões se reuniram na capital Kiev na terça-feira (22) em Lviv, a oeste, com grupos menores em Dnipro, a leste, e em Odesa, ao sul.
O projeto de lei que havia sido aprovado anteriormente pelo Congresso concede supervisão de duas importantes agências anticorrupção ao procurador-geral, uma figura politicamente indicada.
Críticos afirmam que a medida prejudicará dois órgãos, o Nabu (Escritório Nacional Anticorrupção da Ucrânia) e a Sapo (Promotoria Especializada Anticorrupção), e afastará ainda mais a Ucrânia de seu sonho de ingressar na UE (União Europeia).
A UE deixou claro a Kiev que precisa implementar fortes medidas anticorrupção se quiser se tornar Integrante da União. O governo Biden pediu ao governo ucraniano que faça mais para erradicar a corrupção em 2023.
Acusações de corrupção e controle de mídia
A Ucrânia já foi acusada de ser um dos países mais corruptos da Europa. Alegações de corrupção foram feitas contra algumas das principais autoridades do país, incluindo vários aliados próximos de Zelensky – como o ex-vice-primeiro-ministro Oleksiy Chernyshov.
O projeto de lei foi avaliado rapidamente no Parlamento e sancionado por Zelensky na noite de terça-feira (22).
O líder ucraniano afirmou no discurso noturno que ambas as organizações “continuariam trabalhando”, mas defendeu sua decisão como um passo necessário para livrar as duas agências da “influência russa”. Ele também criticou o sistema anterior por levar à paralisação de processos por anos.
Isso ocorreu depois que autoridades ucranianas realizaram uma operação em um dos órgãos na segunda-feira (21) e prenderam dois de seus funcionários “sob suspeita de trabalhar para serviços especiais russos”.
Mas os opositores afirmam que as duas agências não poderão mais operar de forma independente, pois a nova lei dá ao procurador-geral o poder de influenciar investigações e até mesmo arquivar processos.
Críticas de autoridades e das próprias agências
As críticas vieram de todos os setores da sociedade. O ex-ministro das Relações Exteriores Dmytro Kuleba criticou a medida em um comunicado, chamando a terça-feira (22) de um “dia ruim para a Ucrânia”.
A medida também não passou despercebida nas linhas de frente, onde os militares lutam para conter as forças russas.
Referindo-se à corrupção que as agências estavam trabalhando para erradicar, Yegor Firsov, sargento-chefe de um pelotão de ataque de drones, disse no X que “esta não é uma questão de Nabu ou Sapo. Esta é uma questão de barbárie”.
Firsov acrescentou que “nada é mais desmoralizante do que ver que, enquanto você está sentado em uma trincheira, alguém está roubando o país pelo qual seus irmãos estão morrendo”.
As duas agências afetadas afirmaram em comunicado conjunto nesta quarta-feira (23) que foram “privadas das garantias que antes lhes permitiam desempenhar eficazmente as tarefas e funções no combate à corrupção de alto nível”. Elas pediram ao governo que revogasse a lei.
Respondendo às críticas durante seu discurso diário nesta quarta-feira (23), Zelensky disse que apresentaria um novo projeto de lei ao Parlamento com o objetivo de defender a independência das agências anticorrupção.
Ele disse que o novo projeto “fortaleceria o sistema de aplicação da lei” e que “muito importante, todas as normas para a independência das instituições anticorrupção estarão em vigor”.
Críticas se estendem além das fronteiras ucranianas
A filial ucraniana da Transparência Internacional, importante organização independente sem fins lucrativos que monitora a corrupção em todo o mundo, já havia incitado Zelensky a vetar a nova lei.
A organização afirmou que a medida destrói as instituições anticorrupção independentes da Ucrânia, que, segundo ela, foram “uma das maiores conquistas” desde que os protestos pró-europeus desencadearam a Revolução da Dignidade em 2014, que depôs o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych.
As duas agências foram fundadas após a revolução, especificamente para combater a corrupção entre os principais escalões políticos da Ucrânia.
O Nabu é responsável por investigar as alegações de corrupção, repassando-as ao Sapo para que as processe assim que reunir as provas.
A Transparência Internacional também afirmou que a nova lei minaria a confiança dos parceiros internacionais da Ucrânia, já que muitas organizações globais interferiram para criticá-la.
Marta Kos, a principal autoridade da União Europeia responsável pelo processo de admissão de novos Estados-membro, afirmou estar “seriamente preocupada” com a lei.
“O desmantelamento das principais salvaguardas que protegem a independência do Nabu é um sério retrocesso. Órgãos independentes como o Nabu e o Sapo são essenciais para o caminho da UE. O Estado de Direito permanece no centro das negociações de adesão à UE”, disse Kos no X.
Enquanto isso, a Câmara de Comércio Americana considerou a medida decepcionante. Afirmou que a lei “ameaça a independência da infraestrutura anticorrupção da Ucrânia e mina a confiança nos esforços anticorrupção do país”.
“Virada de 180 graus”
A ALI (Agência para Iniciativas Legislativas) um importante centro de estudos ucraniano focado na construção da democracia e que analisa o trabalho do Parlamento do país, afirmou em um comunicado que a nova lei representa uma “virada de 180 graus” nos esforços de integração europeia.
A ALI afirmou que a lei concede ao procurador-geral ucraniano “poderes quase ilimitados”, incluindo a autoridade para transferir casos para diferentes procuradores e bloquear efetivamente quaisquer investigações, superando obstáculos administrativos.
Os procuradores que trabalham para o Sapo passaram por um rigoroso processo de seleção que incluiu consultores especialistas internacionais, afirmou a ALI, acrescentando que eles possuem expertise incomparável em outras áreas do sistema de aplicação da lei.
A ALI também disse que, embora a lei pretenda ser uma resposta à guerra e às atuais circunstâncias extraordinárias, ela prevê que a supervisão do promotor principal continue por três anos após o fim da lei marcial na Ucrânia.
Principal promessa de Zelensky
Combater a corrupção desenfreada do governo foi a principal promessa de campanha de Zelensky antes das eleições de 2019.
Ex-comediante que interpretou o presidente da Ucrânia em um programa de TV de sucesso, Zelensky não tinha nenhuma experiência política antes de sua vitória – mas explorou a consternação dos eleitores com a questão.
Durante a guerra, ele demitiu vários altos funcionários devido a alegações de corrupção, e seu governo implementou medidas anticorrupção, incluindo a Estratégia Nacional Anticorrupção.
Organizações internacionais, incluindo a UE, as Nações Unidas e o G7, já elogiaram o governo de Zelensky por seus esforços anticorrupção.
Mas essas mesmas organizações agora denunciam a nova lei – enquanto os críticos na Ucrânia dizem que a plataforma de campanha de Zelensky para livrar o país da corrupção não passava de promessas vazias.
Fonte: CNN Brasil