Era agosto de 2007 quando o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, afirmou, em uma conversa telefônica, que estava “com a faca no pescoço” ao analisar a denúncia do mensalão, escândalo de corrupção que abalou o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A declaração, captada pela colunista Vera Magalhães, do Globo — à época no jornal Folha de S. Paulo —, caiu como uma bomba no tribunal, que acabou por aceitar a ação contra a cúpula do PT e, mais tarde, condenou a maioria dos réus. Ao se aposentar do cargo nesta terça-feira, Lewandowski não titubeia ao eleger esse julgamento como o momento mais difícil dos seus 17 anos na Corte.
“Como revisor do processo, defendi, com vigor, a minha perspectiva sobre os direitos dos acusados, embora quase sempre vencido, enfrentando uma opinião pública e publicada extremamente adversa”, afirmou ele ao Globo.
Dono de posicionamentos progressistas, Lewandowski ganhou o rótulo de garantista por defender, por exemplo, que condenados possam recorrer em liberdade até o último recurso judicial. Foi ele quem, em 2018, concedeu um habeas corpus coletivo para todas as mulheres presas grávidas e mães de crianças com até 12 anos de idade.
“Espero ter deixado uma visão mais garantista quanto aos direitos dos acusados nos processos criminais e mais generosa no concernente aos direitos das pessoas social e economicamente menos favorecidas”, resume Lewandowski.
A exemplo das ressalvas a seu possível substituto, o advogado de Lula, Cristiano Zanin, a indicação de Lewandowski para a Corte, a primeira após o mensalão, foi criticada na época por sua proximidade com setores do PT e sua relação pessoal com a então primeira-dama, Marisa Letícia. A segunda mulher de Lula, morta em 2017, era amiga da mãe do ministro, Karolina.
A sugestão do nome, contudo, partiu do ex-ministro da Justiça e oráculo do mundo jurídico nas administrações petistas Márcio Thomaz Bastos. Antes de chegar ao Supremo, Lewandowski integrou o extinto Tribunal de Alçada de São Paulo e foi desembargador no Desembargador do Tribunal de Justiça paulista. Entre 1984 e 1988, foi secretário de Governo e Assuntos Jurídicos em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, berço político de Lula.
Na porta de seu gabinete, localizado no terceiro andar do edifício que abriga as salas dos ministros, ele deixa uma placa de acrílico onde se lê “juiz Enrique Ricardo Lewandowski” para dar as boas-vindas a quem chega. É um lembrete, nas palavras de quem conhece o ministro, “para as pessoas saberem de onde ele veio, mas pra ele também não esquecer da sua origem”.
Na sala que ocupou ao longo dos 17 anos, com a exceção dos dois anos da presidência, livros de arte e de direito, filosofia e ciência política ladeiam fotografias e presentes, medalhas e honrarias que a ele foram concedidas. Em uma mesa lateral, uma foto em primeiro plano exibe um jovem Lewandowski ao lado de Lula, ainda nos anos 1980. Ambos de cabelos pretos e bigode. No mesmo móvel também repousa um retrato do ministro, muito católico, e sua esposa, Iara, cumprimentando o papa Bento XVI.
Atuação na pandemia e embates com colegas
A atuação em defesa das garantias dos acusados que Lewandowski quer deixar como principal legado foi uma marca ao longo da sua carreira. Enquanto presidiu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, foi responsável por implementar no Brasil as audiências de custódia, que consistem na apresentação de qualquer preso, em 24 horas, a um juiz, com o objetivo de diminuir o encarceramento em massa.
Também teve papel de destaque na pandemia, quando foi relator de ações como a que autorizou estados, municípios e o Distrito Federal a importar e distribuir vacinas contra a covid e a que determinou a imunização obrigatória.
No ano passado, durante evento realizado nos Estados Unidos, Lewandowski ressaltou o papel de enfrentamento adotado pelo Supremo durante momentos críticos da pandemia no Brasil.
“O Supremo Tribunal Federal, em um momento de paralisia, de inércia, das autoridades públicas, teve o papel de apontar caminhos a serem seguidos pelo governo federal, pelos governos estaduais e municipais, para o enfrentamento da pandemia, evitando que a crise sanitária ganhasse proporções maiores”, disse na época.
Um dos principais críticos dos métodos da Lava-Jato no Supremo, Lewandowski foi responsável por decisões que acabaram pavimentando o caminho para a anulação das condenações de Lula. É o caso do pedido que levou ao acesso às mensagens entre procuradores e o então juiz Sergio Moro. Em 2022, determinou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar o caso conhecido como “Torre Pituba”, ação com maior quantidade de réus da Lava-Jato do Paraná.
E apesar do perfil conciliador, colecionou discussões acaloradas com colegas durante julgamentos na Corte. Na análise do mensalão, da qual atuou como revisor da ação, protagonizou embates com o então ministro Joaquim Barbosa, relator do caso. Em uma das ocasiões, em 2012, provocou a ira de Barbosa ao divergir dele ao votar pela absolvição do ex-ministro José Dirceu por corrupção ativa. Chegou a ser acusado pelo relator de fazer “chicana jurídica”, termo usado para se referir a manobras usadas para atrasar julgamentos.
Em 2016, como presidente do STF, coube a ele presidir o julgamento do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff no Senado Federal. A votação fatiada, que permitiu à petista manter seus direitos políticos mesmo após ser cassada, foi duramente criticada por Gilmar Mendes, que chamou a solução de Lewandowski de “no mínimo, bizarra”. A divergência gerou um bate-boca entre os ministros em uma sessão três meses depois.
“Vossa Excelência, por favor, me esqueça!”, afirmou Lewandowski ao colega, em uma frase que se tornou célebre.
Apesar de divergências pontuais, os agora ex-colegas ressaltam que Lewandowski deixa para trás um legado importante para a Corte em suas três décadas de carreira no Judiciário.
“O Ministro Ricardo Lewandoski é um grande defensor dos direitos fundamentais e da proteção da dignidade humana. Nos mais de 30 anos de magistratura, produziu com competência um vasto legado, apoiado nos valores democráticos. Desejo sucesso nos próximos desafios”, declarou ao Globo o ministro Luiz Fux.
O ministro Luís Roberto Barroso faz coro:
— O Ministro Ricardo Lewandowski é extremamente fidalgo e defende com empenho e coragem suas posições. O convívio com ele é sempre agradável. Argumentador, erudito e competente, fará falta aos debates no Supremo Tribunal Federal.
A partir de hoje, a exatamente um mês de completar 75 anos — idade máxima para que permanecesse no cargo — o ministro agora aposentado passará a ser chamado pelo aposto que sempre preferiu ostentar: o de professor. A amigos e pessoas próximas de seu convívio, costumava dizer que “estava” ministro, mas que professor sempre será. Ele seguirá como titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), título que ostenta desde 1978, e nega que já tenha qualquer definição para o futuro profissional.
Nesta terça, quando abandona definitivamente a toga, receberá uma homenagem no Ministério da Educação (MEC), a convite do ministro Camilo Santana. E fará uma comemoração com os funcionários de seu gabinete em algum lugar mantido em segredo, mas que, garante, será longe da Praça dos Três Poderes.
Fonte: O Globo