ARACAJU/SE, 12 de junho de 2025 , 8:42:14

A brevidade da vida e a eternidade processual

 

Nos primeiros anos da era cristã, o filósofo Lúcio Aneu Sêneca escreveu uma carta a seu amigo Paulino sob o título “Sobre a brevidade da vida”. O clássico principia: “A maior parte dos mortais, Paulino, queixa-se da malignidade da natureza, porque somos gerados para uma curta existência, porque esse espaço de tempo que nos é dado transcorre tão veloz, tão rápido, que, com exceção de bem poucos, os demais a vida os deixa exatamente nos preparativos para a vida.” Para o pensador estoico, a vida não é curta, mas o homem comum a desperdiça. Ele morre esperando o momento certo de viver, pois subestima o mais escasso dos bens: o tempo.

A lição de Sêneca tem força particular na sociedade contemporânea, onde o tempo se tornou ainda mais precioso e, paradoxalmente, mais desperdiçado por estruturas que deveriam proteger o cidadão. O tempo é constantemente devorado por obstáculos absurdos, como a demora dos transportes públicos ou a espera para tratamento médico no Sistema Único de Saúde. A vida escoa na janela do ônibus para milhões de trabalhadores retidos em engarrafamentos diariamente, ou literalmente termina enquanto se aguarda um atendimento cirúrgico.

Para profissionais jurídicos e partes em litígio, a advertência sobre o mau uso do tempo é igualmente válida: estão envolvidos numa máquina judicial que, paradoxalmente, em vez de pacificar, transforma-se num palco de tortura processual. O instrumento de flagelo? O tempo.

“Não dispomos de pouco tempo, mas desperdiçamos muito”, alertava Sêneca. Verdade. Quando litigam, as pessoas suportam não apenas os danos que as levaram ao Judiciário, mas também aqueles que o próprio sistema inflige: uma espera que se traduz em anos de aflição, uma burocracia que provoca amargura, uma ansiedade que se transforma em martírio.

A litigiosidade, na enorme maioria dos casos, representa uma necessidade imperiosa: como o empregado receberá o que o patrão não quis pagar? Como o consumidor obterá o produto que não lhe foi entregue? Como o cidadão será atendido num direito que a lei assegura quando o Estado é negligente? Como o contribuinte evitará a tributação injusta? Como o administrado encontrará escudo contra o abuso estatal? Como o acusado poderá se defender? O Judiciário é o inevitável lugar de solução desses conflitos.

Boa parte dessa judicialização decorre do comportamento descuidado dos entes públicos. Segundo uma reportagem de O Globo, de 16 maio deste ano, a fila do INSS chegou a 2,67 milhões de pedidos pendentes em abril de 2025. Um número obsceno. É gente que precisa de auxílios-doença, aposentadoria, pensão por morte, benefícios destinados à camada mais frágil da sociedade. Outra reportagem, de 16 de março passado, no mesmo jornal, revela que a fila de espera por consultas no SUS bateu recorde: 57 dias. Havia, em janeiro deste ano, 5,7 milhões de pessoas ansiando por uma consulta na rede pública. Uma indignidade.  O tempo médio de espera por cirurgia oncológica é de 188 dias, quase uma sentença de morte lavrada por inércia. Uma calamidade.

O relatório “Justiça em Números 2024”, do Conselho Nacional de Justiça, confirma essa engrenagem dolorosa, que transporta para o Judiciário o que o Estado não conseguiu resolver antes. Ao final de 2023, o Brasil contabilizava 83,8 milhões de processos em tramitação. O ingresso de 35,3 milhões de novos casos representou recorde histórico, enquanto 33,2 milhões, outro recorde, foram julgados. O estoque continua crescendo numa corrida em que a demanda sempre supera a capacidade de resposta.

A morosidade decorrente da inflação processual é alarmante. O tempo médio processual na Justiça Estadual é de 4 anos e 5 meses, na Federal de 4 anos e 3 meses. Nas execuções fiscais, 7 anos e 9 meses. Significa que nem mesmo o Estado consegue fazer com que seus direitos arrecadatórios sejam adimplidos. Não pagar tributos pode compensar.

Na seara criminal, há 8,9 milhões de processos em tramitação. Na fase de conhecimento são 6,2 milhões de processos, que levam 2 anos e 7 meses até o primeiro julgamento na Justiça Estadual e 2 anos e 10 meses na Federal. Esse volume impõe verdadeira pena processual aos inocentes, obrigados a suportar anos de tramitação até eventual absolvição. Redobra os padecimentos das vítimas, que não conseguem ver a efetivação da lei. Dá esperança aos culpados, que podem ver os delitos prescritos.

Esse número imenso retrata a insegurança pública no Brasil. Com tantos processos criminais em curso, percebe-se a quantidade de delinquência em prática pelo país, já que apenas uma fração dos delitos consegue ser alcançada pelas autoridades de persecução. Aqui também falha o Estado.

O “Painel de Grandes Litigantes” do mesmo relatório revela os principais causadores do congestionamento. O INSS lidera com 3,8 milhões de processos, ladeado por outros entes estatais como a Caixa Econômica Federal. Dos dez maiores réus, sete são entes públicos. Essa predominância reflete arraigada cultura oficial de resistência sistemática ao cumprimento de direitos. Por alguma razão inalcançável por pessoas de boa-fé, é mais vantajoso deixar judicializar do que resolver o problema fora dos autos.

Em certos casos, isso tangencia o sadismo. Nos Juizados Especiais Federais, benefícios assistenciais a pessoas com deficiência figuram entre os cinco assuntos mais demandados. Pessoas que já enfrentam barreiras existenciais, são forçadas, para não passar necessidade extrema, a buscar na Justiça o que deveria ser automaticamente concedido pelo Estado.

Com essas perversões, processos judiciais perdem sua função primeira para se tornarem formas de tormento. A vida é dilapidada em prazos, audiências, recursos… Vira uma sequência de provações que transforma cada etapa da espera em fonte de desgosto.

Sêneca observava que “a maioria das pessoas morre ocupada — e não viva”. Quantos profissionais jurídicos trabalham para a Justiça no sincero propósito de bem servir, mas esmorecem, não apenas atolados em papéis, vidrados em telas de monitores, mas mergulhados numa rotina angustiante? Quantos não percebem que se tornaram parte desse engenho que dilui direitos no ácido dos dias, semanas, meses e anos?

De modo especial, os advogados têm percebido o aviltamento de suas prerrogativas. A pretexto de elevar a quantidade de julgamentos, eventos processuais necessários têm sido suprimidos ou transformados numa ficção. Qualquer patrono já teve de passar pelo ridículo de produzir vídeos gravados destinados a sessões virtuais onde se apreciam centenas de recursos. É improvável, pela quantidade de processos pautados, que os julgadores vejam as defesas audiovisuais remetidas. Existe também a suspeita de que algumas decisões têm sido proferidas por inteligência artificial, sem revisão humana. Isso pode melhorar a produtividade, mas só piora as coisas.

Para além da necessidade de punir quem gera esse contencioso monstruoso, especialmente os agentes estatais, a cultura judicial brasileira clama por revisão radical. Simplificação procedimental, estímulo à conciliação, uso estratégico da tecnologia e compromisso com a razoável duração do processo não podem ser bandeiras retóricas. O tempo não é neutro: pesa, desgasta, define destinos.

Não é incomum que idosos morram antes do reconhecimento de um direito indiscutível. Há quem feneça à espera de sentença, quem nunca veja a quitação de um precatório, quem se frustre com a reparação que nunca chega. “Nada é menos peculiar do homem ocupado do que viver”, ensina Sêneca. Em processos que se arrastam por décadas, observam-se vidas suspensas, sonhos adiados, tempo desperdiçado em flagelos burocráticos. 

A brevidade da vida, tema da carta de Sêneca, é uma advertência de que o tempo não pode continuar sendo perdido em juízo. Essa é uma forma insidiosa de sofrimento, uma fatalidade que corrói a esperança. E isso, numa sociedade que se pretende justa e solidária, é inaceitável.