Se é verdade que o Supremo Tribunal Federal tem sido, nesses últimos anos, instituição garantidora da democracia e que conteve os abusos e arroubos autoritários bem como ameaças de rupturas institucionais que flertaram com golpes e fechamento do regime, tudo isso além do seu importantíssimo papel na contenção dos efeitos do negacionismo na condução das medidas de prevenção e combate ao coronavírus ao longo de toda a extensão da pandemia, é verdade também que, não é de hoje, tem sido uma instituição que, no plano dos direitos e garantias fundamentais sociais e econômicos, tem atuado cada vez mais no sentido de conter os enormes avanços no tema determinados pela Constituição de 1988 e pelas convenções internacionais, em prejuízo dos trabalhadores e em benefício do poder econômico.
Capítulo recente dessa trajetória é a manutenção (com revogação apenas parcial) de medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade nº 7222 para determinar que o piso salarial nacional da enfermagem deve ser pago aos trabalhadores do setor público pelos estados e municípios na medida dos repasses federais e que, quanto aos empregados sob regime da CLT, prevalece a exigência de negociação sindical coletiva como requisito procedimental obrigatório (ou seja, prevalência do negociado sobre o legislado).
Ora, o piso salarial nacional da enfermagem foi uma conquista social muito importante para essa categoria profissional e para a sociedade, beneficiada com os relevantes serviços prestados e que foram tão comemorados e justamente homenageados nos momentos mais críticos da pandemia do coronavírus. Tratou-se de importante arranjo legislativo, bem engendrado, para fazer valer direito fundamental social assegurado na Constituição.
Com efeito, primeiro foi promulgada a emenda constitucional nº 124 (em 14/07/2022), que instituiu o piso salarial nacional do enfermeiro, do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira, a ser formalizado e instituído por lei federal.
O piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho é um direito fundamental social dos trabalhadores (art. 7º, inciso V). Tal piso salarial deve ser estabelecido em lei federal (afinal, é a União competente privativamente para legislar sobre direito do trabalho – art. 22, inciso I). A necessidade de uma emenda constitucional para prever na Constituição a garantia do piso salarial nacional de uma profissão que é exercida tanto por trabalhadores pelo regime jurídico da CLT (e portanto empregados de empresas privadas ou de pessoas jurídicas de direito privado) quanto por servidores públicos (federais, estaduais, distritais e municipais) decorre da autonomia dos entes federativos para dispor sobre o regime jurídico de seus próprios servidores; assim, sem previsão na Constituição, a lei federal não poderia impor a Estados e Municípios o piso salarial. Com a previsão na Constituição dessa garantia do piso salarial, passa a ser da lógica constitucional a aplicação da lei federal – que, atendendo a determinação constitucional, fixa o valor do piso – também aos Estados e Municípios, nos mesmos moldes do que já ocorre por exemplo com o magistério.
Depois, em 04/08/2022, foi promulgada a Lei nº 14.434, que estabeleceu o piso salarial nacional do seguinte modo: R$ 4.750,00 (quatro mil setecentos e cinquenta reais) – enfermeiros; 70% do valor do piso – técnico de enfermagem; 50% do valor do piso – auxiliar de enfermagem e parteira.
Impulsionado pela decisão cautelar de agosto do ano passado, foi engendrado novo arranjo legislativo que viabilizou financeiramente o pagamento do piso salarial da enfermagem. Daí então a rápida tramitação da proposta de emenda à constituição que, aprovada pelo Congresso Nacional, foi promulgada em 22/12/2022 (emenda nº 127). Foram acrescentados ao art. 198 os §§ 14 e 15, com o seguinte teor: “§ 14º Compete à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e às entidades filantrópicas, bem como aos prestadores de serviços contratualizados que atendam, no mínimo, 60% (sessenta por cento) de seus pacientes pelo sistema único de saúde, para o cumprimento dos pisos salariais de que trata o § 12 deste artigo; §15º Os recursos federais destinados aos pagamentos da assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e às entidades filantrópicas, bem como aos prestadores de serviços contratualizados que atendam, no mínimo, 60% (sessenta por cento) de seus pacientes pelo sistema único de saúde, para o cumprimento dos pisos salariais de que trata o § 12 deste artigo serão consignados no orçamento geral da União com dotação própria e exclusiva.”.
Quando tudo parecia apontar, então, para a aplicação do piso salarial nacional da enfermagem tal como determinado na lei, que materializou determinação em regra constitucional corroborada por seus princípios fundamentais, o STF decide, por 8 a 2, que não é bem assim, que os avanços trabalhistas devem se ajustar às contingências de mercado e a obstáculos decorrentes da realidade social e econômica.
Como bem apontou o voto vencido do Ministro Edson Fachin, que bem resume essa nossa crítica a mais essa decisão do STF contra avanços nos direitos trabalhistas, “A noção que sobrevém da convergência de inúmeros preceitos constitucionais, a exemplo, entre outros, dos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da valorização social do trabalho (art. 1º, IV) e da justiça social (arts. 3º, I, II e III; 7º a 9º; 170; e 193) conduz à necessidade de máxima proteção da relação de trabalho, com vistas à concretização do direito fundamental ao trabalho (art. 5º, XII) e à promoção dos direitos fundamentais sociais trabalhistas (arts. 7º a 11)”.