Houve até quem acreditasse. Houve quem tivesse esperança. Mas, por aqui, as coisas são diferentes e a lei, às vezes – ou muitas vezes – “não pega”. Segue um exemplo.
É possível observar um fluxo progressivo de elevação das proteções de direitos de participação política feminina, mediante a reserva de candidaturas, perceptível no sistema jurídico: Lei 9.100/95 (20%), Lei 9.504/97 (25%), Lei 12.034/2009 (30%).
Nesse passo, importantes decisões foram tomadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para promover maior equidade racial nas eleições brasileiras, em 2020.
Em 25 de agosto, o TSE, ao responder à Consulta nº 0600306-47.2019.6.00.0000, decidiu que os partidos deveriam distribuir os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV de maneira proporcional ao número de candidatos negros e brancos.
Essa decisão, escorada em princípios constitucionais, buscou corrigir a histórica sub-representação de pessoas negras na política. Garantiu uma distribuição mais justa dos recursos públicos destinados às campanhas eleitorais.
Aos 2 de outubro de 2020, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6547, confirmou a constitucionalidade da decisão do TSE. Relatada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, a decisão do STF consolidou a obrigatoriedade da distribuição proporcional dos recursos de campanha e do tempo de propaganda eleitoral entre candidaturas negras e brancas.
O STF reforçou que essa medida era compatível com os princípios constitucionais de igualdade e justiça material, assegurando que as eleições brasileiras se tornassem mais inclusivas e representativas.
A Lei 14.162/2021 reprimiu a violência política contra as mulheres. Mais um passo adiante.
A Emenda Constitucional 111/2021 avançou um pouco. Ela estabeleceu que, para fins de distribuição entre os partidos dos recursos do Fundo Partidário (FP) e FEFC, os votos dados a mulheres ou a pessoas negras para a Câmara dos Deputados nas eleições de 2022 a 2030 seriam contados em dobro. Um incentivo a essas candidaturas, portanto.
Em 2022, um retrocesso. A Emenda Constitucional 117 anistiou incondicionalmente quem tivesse descumprido essas regras. A matéria foi imediatamente levada ao STF pela Rede Sustentabilidade (ADI 7419), está sob a relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, mas até hoje não foi julgada.
Segue o baile. Em 27 de fevereiro de 2024, ao responder à Consulta 0600222-07.2023.6.00.0000, o TSE determinou que partidos e federações partidárias com candidaturas indígenas registradas teriam direito à distribuição proporcional de recursos do FP e do FEFC e a tempo gratuito de rádio e televisão. A decisão, relatada pelo Ministro Nunes Marques, alinhou-se aos esforços já aplicados às candidaturas femininas e negras. Mais um avanço na promoção da inclusão e da diversidade no cenário político nacional.
O TSE é rigoroso no combate à fraude à cota de gênero nas eleições. O Tribunal editou, este ano, a didática Súmula 73. Patenteou que a fraude à cota de gênero, caracterizada pelo desrespeito ao percentual mínimo de 30% de candidaturas femininas é configurada quando, no caso concreto, são identificados elementos como: (1) votação zerada ou inexpressiva; (2) prestação de contas zerada, padronizada ou sem movimentação financeira significativa; e (3) ausência de atos efetivos de campanha, divulgação ou promoção de candidaturas.
Quando reconhecida a fraude, a Súmula diz que as consequências são severas: (a) cassação do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (Drap) da legenda e dos diplomas dos candidatos vinculados, independentemente de prova de participação ou anuência deles; (b) declaração de inelegibilidade daqueles que praticaram ou concordaram com a fraude, em ações de investigação judicial eleitoral; e (c) nulidade dos votos obtidos pelo partido, resultando na recontagem dos quocientes eleitoral e partidário. Isso pode levar à anulação do pleito.
Além dessas consequências, os partidos poderiam sofrer sanções, como a desaprovação de contas, o que quer dizer multas e perdas de repasses de recursos dos fundos.
Poderiam. Em 22 de agosto de 2024, o Congresso Nacional, mais uma vez, escreveu um capítulo triste na história política do Brasil ao promulgar a Emenda Constitucional 133. Sob a máscara promoção da inclusão e da justiça social, o que se vê, embutido no texto, é mais um perdão coletivo às legendas que, até então, descumpriram as cotas para financiamento de campanhas de mulheres, negros e indígenas.
O texto, justificado como um progresso, traz em seu cerne um atraso: a “consideração de cumprimento” das cotas para os segmentos historicamente prejudicados, mesmo por aqueles partidos que não as cumpriram. Um eufemismo para o perdão de dívidas e multas acumuladas por anos de inadimplemento da lei. É a vitória do infrator, a mensagem de que, no Brasil, descumprir as normas não apenas é tolerado, mas também recompensado.
A situação é ainda mais chocante quando considerados os valores envolvidos. O total do FEFC distribuído para os partidos nas eleições de 2024 é de R$ 4.961.519.777,00. Esse montante bilionário é, em parte, destinado a agremiações que falharam em cumprir as normas que deveriam garantir maior representatividade e inclusão social.
Esses agrupamentos, que deveriam ser penalizados pelo desrespeito à lei, agora se beneficiam de um perdão que envolve quantias bilionárias. Pior. São legisladores filiados às próprias legendas transgressoras que costuraram a anistia das infrações. O uso de recursos públicos, que deveriam servir para fortalecer a democracia e garantir representatividade, é desvirtuado para servir de tapete sob o qual se acumulam os erros do passado.
A imunidade tributária ampliada, o refinanciamento de dívidas e o perdão de multas, também acoplados nessa emenda, são concessões que privilegiam agremiações que desrespeitaram o pacto social.
O Congresso decidiu que aqueles que não cumpriram suas obrigações legais não enfrentarão qualquer consequência real. A anistia é condicionada apenas ao compromisso de aplicar os recursos devidos nas próximas quatro eleições. Ou seja, o que deveria ser obrigação desde sempre é tratado como moeda de troca para o perdão de infrações passadas. Eis a lógica por trás da EC 133.
A inconsistência do discurso justificador desse absurdo é gritante. Ao afirmar que a emenda não perdoa sanções, mas apenas ajusta o futuro, os legisladores ignoram o princípio de que as leis devem ser cumpridas. Se não há qualquer consequência para aqueles que as desrespeitam, o que valem elas? Ao transformar – por duas vezes! – o cumprimento da legislação em algo opcional, sujeito a ajustes convenientes para os violadores, o Congresso sinaliza que a legalidade pode ser moldada irrestritamente.
A raposa. A chave. O galinheiro. Tudo revela um sistema político mais preocupado em proteger seus próprios mecanismos do que em promover a verdadeira inclusão. Ela não só enfraquece a crença na vigência e validade da lei posta como também desmotiva aqueles que, dentro das regras, disputaram eleições. O triunfo do transgressor é uma derrota para o Brasil, para a democracia e, sobretudo, para a crença de que a justiça e a legalidade devem ser universais, e não instrumentos manipulados por quem detém o poder. Quando será a próxima anistia?
Nota final. A EC 133/24 está sob apreciação do STF, no âmbito da ADI 7706, também proposta pela Rede, sob a relatoria do Ministro Cristiano Zanin. Seja qual for a interpretação da Suprema Corte, é necessário desde já ponderar que enquanto os infratores forem celebrados e anistiados, o respeito à lei, um sinal de honestidade cívica, será visto como ingenuidade, tolice, fraqueza.