O Frei Vicente do Salvador em sua clássica obra História do Brasil datada de 1627, vaticinou que “nenhum homem nessa terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. Impressionante como ainda somos um país patrimonialista e estamental, ávido pela preservação de privilégios, existindo algumas atividades ou carreiras de estado que recebem um tratamento diferenciado, antirepublicano e completamente danoso aos interesses da coletividade e da cidadania.
É nesse contexto que se inserem os militares. Ao se valer do lema “Braço forte, mão amiga” o Exército Brasileiro demonstra que as forças armadas possuem tanto o poder de combate e manutenção da lei e da ordem (braço forte), como também estão aptos a prestarem pronto auxílio nas hipóteses de calamidade pública, situações de emergência e crises humanitárias, como nas enchentes, campanhas de vacinação e acolhimento de refugiados (mão amiga).
Acabamos de sair de um governo que optou por enaltecer os militares, aumentando exponencialmente o número de integrantes das três forças como ocupantes de cargos em comissão na administração pública direta e indireta. De repente passamos a ter generais e outros oficiais cuidando de temas variados tais como saúde, educação, petróleo e gás, esporte, orçamento e transporte.
Os militares saíram da caserna e voltaram a emitir opinião sobre vários assuntos, figurando como especialistas até em matérias inóspitas como urnas eletrônicas e liberação de mercadorias apreendidas na alfândega. Todo esse protagonismo revelou para a nação que além do braço forte e da mão amiga, uma parte considerável dos integrantes das forças armadas luta com bastante denodo por sinecuras, são guerreiros voltados à preservação de benesses injustificáveis em uma república, buscam tratamento diferenciado no serviço público, esquivando-se para não serem açambarcados pelos princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade e razoabilidade.
Dentre referidos privilégios que transformam a ideia de república (res publica) em cosa nostra, pode-se citar a existência de pensão vitalícia para filhas solteiras, o pagamento de pensão a esposa e filhos do militar que condenado criminalmente foi expulso da corporação, regras próprias de previdência com critérios específicos de reforma e diversos auxílios que só existem na caserna, demonstrando que nem só de patriotismo vivem os fardados.
Em razão das limitações do presente texto, cuidaremos apenas do pagamento de pensão a esposa e/ou filhos do militar que sofre condenação criminal com trânsito em julgado e em razão do crime praticado tem como consequência da sentença condenatória a perda da graduação (no caso dos praças) ou do posto e da patente pelo processo de indignidade ou de incompatibilidade (em se tratando de oficial).
A Constituição Federal de 1988 definiu a presunção de inocência como uma garantia fundamental, estabelecendo no preceito agasalhado no art. 5º, LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Tem-se o trânsito em julgado como limite de respeito à não culpabilidade.
Essa regra vale para todos os servidores públicos civis que respondam a um processo criminal, devendo suportar como efeito da condenação criminal a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo, quando praticados ilícitos com abuso de poder ou violação do dever para com a administração pública ou acaso venha a ser condenado a uma pena superior a 4 anos nas demais hipóteses em que o crime não tenha correlação com o cargo público ocupado (art. 92, I, “a” e “b”, do Código Penal).
Para o militar considerado indigno da função, condenado com trânsito em julgado por crime grave (como traficar drogas dentro de uma aeronave que transporta o presidente da república) ou mesmo um homicídio no envolvimento com milícias, seu cônjuge recebe uma pensão vitalícia, passando as forças armadas a considerar o militar como morto.
Cuida-se de dádiva instituída pela Lei 3.765/60, promulgada pelo presidente Juscelino Kubitschek, em um tempo distante, quando os princípios constitucionais que norteiam a administração pública ainda eram ideias embrionárias e o estado era visto como o grande protetor e provedor. Trata-se de regra totalmente inconstitucional por ferir a moralidade administrativa, a razoabilidade e a impessoalidade, criando uma fictio juris ao definir o militar expulso das forças armadas como morto, destinando o valor do soldo para a esposa ou familiar.
Eis o ridículo da situação. O militar que trair a pátria, portar-se sem pundonor para o exercício do cargo, demonstrar total inaptidão para as funções militares deverá ser expulso das forças armadas, entrementes, ser-lhe-á garantida uma pensão vitalícia com amparo em uma ficção jurídica originariamente destinada aos militares desaparecidos sem comprovação de óbito.
Cria-se a figura do “morto-vivo”. Paradoxalmente esse péssimo militar que atentou contra o estado democrático de direito ou cometeu crimes que fazem corar frades de pedra (como estupro de vulnerável, corrupção, homicídio, traição, etc.) está morto para as forças armadas, porém está vivíssimo para continuar atuando (inclusive tendo acesso aos palácios como demonstram as investigações recentes envolvendo o ajudante de ordens do ex-presidente e um ex-major expulso do Exército) e principalmente para continuar recebendo recursos públicos.
Tem-se o indigno do oficialato que continua digno do soldo. Verdadeiro escárnio. Caberia a pergunta: como remunerar alguém vitaliciamente que não tem aptidão moral para exercer determinada função?
Registre-se que mesmo a reforma da previdência (que tantas restrições trouxe aos trabalhadores e pensionistas brasileiros) não foi capaz de alterar esse privilégio vergonhoso. As mudanças limitaram-se a inserção de previsão de pagamento proporcional ao tempo de serviço. Significa dizer que até 2019 (com o advento da Lei nº. 13.954) o péssimo militar expulso da corporação recebia proventos integrais. Somente depois de 2019 passou a receber de forma proporcional ao tempo de serviço, quando em verdade não deveria receber absolutamente nada.
Quem comete crimes deve ser punido e não premiado. Essa benesse se assemelha a aposentadoria de juízes e promotores como uma das sanções administrativas previstas em lei. Em um país de miseráveis como o Brasil, em que trabalhadores penam nas filas do INSS para receberem seus benefícios previdenciários, aposentadoria não pode ser considerada sanção, mas sim uma recompensa aos relevantes serviços prestados pelo jubilado.
Apanágios desse tipo fazem com que a tão propalada honra militar, a coragem de arrostar o perigo e o fervor na defesa da pátria tenham um outro sentido, uma outra valoração e mereçam uma análise mais apurada.
Deve-se urgentemente atualizar a legislação militar, fazer com que os princípios constitucionais adentrem nos quartéis, demonstrando que não existem servidores de primeira e segunda categoria, afastando todas essas benesses incrustadas em leis obsoletas e inconstitucionais, lutando-se para que quiçá um dia possamos viver em um país em que efetivamente todos sejam iguais perante a lei, independentemente de usar uniforme verde-oliva ou trajes civis.