José Rollemberg Leite Neto
Era 16 de março de 1978. O ex-primeiro-ministro italiano Aldo Moro, presidente da Democracia Cristã, principal partido italiano, deixou a sua casa, em Roma, para participar da sessão parlamentar que marcaria a entrada do Partido Comunista na composição do governo parlamentarista pluripartidário italiano. Era o “Compromisso Histórico”, que ele arquitetara.
Crises sucessivas abalavam a estabilidade política do país. Moro, hábil negociador, entendeu que precisaria juntar as forças oponentes para construir uma coalizão estável. Nem os Estados Unidos, nem a União Soviética, gostaram da ideia. Seus aliados internos, idem. Havia tensão no ar.
Dentro do país, infestado de organizações terroristas de ambos os polos (fascismo e comunismo), imperava a insegurança pública. Qualquer espaço público era lugar passível de uma ação “revolucionária”, com saldo de mortes ou de ferimentos. A isso, agregava-se a existência da Máfia e organizações criminosas concorrentes. Eram os “anos de chumbo” na Itália.
Naquele dia, Moro não conseguiu chegar ao Parlamento e assistir à sessão em que cinco agremiações formariam uma ampla coalizão governamental. À altura da Via Mario Fani, às 9h02, o seu veículo e o carro da escolta foram interceptados por um Fiat 126 branco, ocupado por militantes das Brigadas Vermelhas (“Brigate Rosse”), grupo terrorista de extrema esquerda. Armados de metralhadoras, foram ágeis e implacáveis. Uma rápida sequência de tiros matou os cinco agentes que faziam a sua segurança. Moro foi levado em um Fiat 138 azul para um cativeiro na Via Camillo Montalcini, n. 8, local que permaneceu oculto até o fim de seu calvário. Ficou em uma cela de 2,0 x 0,9 metros, com isolamento acústico.
Iniciava-se um drama político. Naquele instante, Moro comandava o partido mais importante da Itália e era o fiador de um acordo pluripartidário inédito e ambicioso. Havia esperança nesse ajuste até o sequestro; depois dele, pairou um sério risco de ruptura democrática. A ação atingia mais do que um líder político: buscava desestabilizar o pacto que poderia reduzir a radicalização e isolar grupos armados.
A resposta do governo italiano, empossado naquele dia, foi imediata e categórica: não haveria negociação, nem troca de prisioneiros. Foi uma decisão tomada sob o argumento de que qualquer concessão aumentaria o valor político do sequestro e incentivaria novos ataques a autoridades. Todos os partidos da coalizão apoiaram inicialmente essa diretriz, inclusive o Comunista. Dias mais tarde, o Partido Socialista pedirá, sem sucesso, que o governo ouça as exigências dos captores.
No cativeiro, Moro escreveu dezenas de cartas. 86, pelo menos. Elas mostravam alguém em plena lucidez, ciente de sua condição de marcado para a morte e informado das discussões externas sobre o seu destino.
Não era apenas ele a mandar cartas. Seus sequestradores também expediam comunicados. Eles informaram que Moro, considerado um agente do “Estado das Multinacionais”, estava na “Prisão do Povo”, sob processo de um “tribunal revolucionário”. Mario Moretti, líder dos terroristas, gravou os interrogatórios desse tenebroso procedimento.
Essa troca de comunicados incluía manifestações da sociedade italiana e do restante da comunidade internacional. O Papa Paulo VI pedia orações por Moro. Os EUA mandaram um especialista em negociações, Steve Pieczenik, que, paradoxalmente, recomendou que não se negociasse.
Em diversos trechos de suas epístolas, Moro, que era professor de Direito, contestava a ideia de que a “razão de Estado” justificaria sua morte. Pedia ao governo do seu correligionário Giulio Andreotti que considerasse uma solução humanitária, soltasse 13 presos no exílio, como exigido pelos delinquentes. Ele criticava a rigidez da linha política e se dirigia ao seu partido, a Democracia Cristã. Acusou-o de tratá-lo como peça sacrificável.
As suas cartas tinham destinatários certos, devidamente nominados. A cada um deles, ele fazia apelos dramáticos. Elas e as respectivas respostas revelam uma tensão imensa: um cidadão, relevante na vida institucional do país, apelava ao governo para que relativizasse sua própria política de segurança. O governo, por sua vez, sustentava que ceder significaria colocar mais vidas em risco, no futuro. Transigir era estimular novas ações terroristas e premiar a morte covarde dos agentes de segurança.
Uma colisão de interesses estava posta: um homem sequestrado queria que o governo negociasse com os criminosos. O governo temia o precedente. Prendia-se à razão. Todavia, na opinião pública italiana, muitos enxergavam que os políticos queriam, somente, aproveitar a chance de, literalmente, eliminar Moro da vida pública. Sórdido. Nas cartas, a partir de certo instante, tem-se a impressão de que Moro passou a entender assim também.
Esse sentimento apareceu de forma explícita nas mensagens em que Moro afirmou que o Estado não poderia chamar de “razão” aquilo que, na prática, equivaleria a abandoná-lo, matá-lo.
Desesperadas, as cartas desmontavam a ideia de que a recusa absoluta a qualquer forma de diálogo seria inevitável. Moro lembrava que outros governos europeus já haviam negociado em outras crises semelhantes. Seu pedido não era uma adesão cega às exigências das Brigadas Vermelhas, mas a abertura de uma alternativa que não o condenasse à morte.
O quadro geral piorava as coisas. Se o governo italiano sustentava que não negociar era necessário para proteger o Estado, esperava-se ao menos uma resposta eficiente do aparato policial e de inteligência. Não foi o que ocorreu. O período de 55 dias de cativeiro expôs investigações mal coordenadas, informações não compartilhadas, pistas ignoradas e rivalidades internas entre órgãos que buscavam protagonismo em vez de resultados.
Um dos episódios mais exóticos dessa tragédia tem teor sobrenatural. Em uma sessão espírita em que se encontravam alguns de seus amigos, entre eles o futuro primeiro-ministro Romano Prodi, surgiram as palavras “Gradoli” e “Viterbo”, cidades italianas. Informada disso, a polícia fez buscas nessas localidades, sem sucesso. Depois, descobriu-se que, na Via Gradoli, em Roma, havia uma célula de coordenação das Brigadas Vermelhas. Mais tarde, também se soube que, em 21 de março, em Viterbo, uma testemunha de 15 anos, noticiou que viu um alemão com uma metralhadora. Não deram relevância à informação. Soube-se, após o desfecho do caso, que era um terrorista, que mantinha contato com Mario Moretti.
Diversas oportunidades foram perdidas por erros básicos de vigilância, infiltração e análise. Mesmo com intensa mobilização, as Brigadas Vermelhas mantiveram o cativeiro intacto, movimentaram-se por Roma com relativa tranquilidade e controlaram o fluxo de informações para a imprensa.
O efeito disso era fácil de calcular: ao rejeitar qualquer negociação e ao mesmo tempo falhar em localizar o cativeiro, o Estado colocou todo o ônus da intransigência sobre Moro, sem oferecer a ele alternativa concreta de sobrevivência.
O tom das cartas ficou mais emotivo. Os políticos, a quem Moro acusava de desampará-lo, reagem: disseram que ele perdeu a sanidade, que não estava mais no gozo pleno de suas faculdades mentais. Moro retrucou: afirmou que estava capaz e, desenganado, suplicou, então, que eles, os políticos, não comparecessem ao seu enterro. Será atendido.
Os terroristas não perderam a oportunidade de tripudiar sobre o sofrimento de Moro e da sociedade italiana. Em 7 de abril, anunciaram que concluíram o “julgamento” e Moro havia se suicidado. Disseram que o corpo estaria no congelado Lago della Duchessa. Mas era tudo mentira.
Não muito depois desse episódio de macabro chiste, em 20 de abril, deram um ultimato. A troca de prisioneiros pela vida do refém teria de ocorrer em até 48 horas. Contudo, nada evoluiu.
Em 9 de maio de 1978, as Brigadas Vermelhas informaram que o corpo de Moro foi deixado no porta-malas de um Renault 4 vermelho, na Via Caetani, no centro de Roma, simbolicamente entre a sede da Democracia Cristã e a do Partido Comunista. O gesto final das Brigadas Vermelhas buscava demonstrar o fracasso em resolver o dilema que elas próprias haviam imposto.
A história foi contada pelo deputado Leonardo Sciascia em “O Caso Moro”, escrito em 1978 e publicado no Brasil, em 2025, pela Editora Manjuba. Sciascia era membro do Partido Comunista e alocou o foco da sua narrativa não na crítica da ação terrorista, mas no drama das cartas e na incompetência desastrosa do governo. Ao final da obra, consta o relatório que ele preparou na investigação parlamentar desse funesto episódio.
O tema não está preso na história. É vivo, embora latente. Nada impede que algo semelhante volte a acontecer em alguma democracia do mundo. Sob o ponto de vista jurídico (e moral), o episódio lança luzes sobre o “estado de necessidade público” e os deveres estatais de proteção. O Estado não tem obrigação jurídica de negociar com criminosos, mas tem o dever de adotar medidas proporcionais e eficazes para preservar a vida do abduzido. No caso de Moro, o componente operacional comprometeu qualquer justificativa sólida da postura governamental: a recusa em negociar não foi compensada por uma estratégia de resgate eficiente.
Além disso, o fenômeno excede a teoria política e abraça o sofrimento humano concreto. As cartas de Moro, mais do que documentos pessoais, são o registro de um confronto entre indivíduo e Estado em seu ponto mais extremo. Elas revelam a solidão e a submissão totais de quem depende de uma decisão política sobre sua própria sobrevivência. Elas evidenciam que a rigidez doutrinária, quando desacompanhada de competência institucional, produz resultados desastrosos.
Esse crime nefando continua a desafiar governos e juristas porque expõe que, em crises extremas, decisões “de princípio” só são defensáveis se acompanhadas de uma capacidade concreta de preservar vidas. Caso contrário, transformam-se em sentenças capitais anunciadas. Às vezes, em derrotas morais.