ARACAJU/SE, 2 de abril de 2025 , 11:57:35

Justiça e democracia: o necessário caminho da responsabilização

 

Na última semana, o Supremo Tribunal Federal recebeu denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente da República Jair Bolsonaro e diversas outras ex-autoridades civis e militares, por envolvimento em um articulado plano de ruptura institucional, cuja culminância se deu na tentativa de golpe de Estado e na violenta invasão das sedes dos três Poderes da República, no dia 8 de janeiro de 2023.

Esse recebimento da denúncia, após cuidadosa análise prévia de sua admissibilidade, representa mais do que um ato processual: constitui passo fundamental na afirmação do Estado Democrático de Direito, pois sinaliza que, em uma democracia constitucional, ninguém está isento de responsabilidade por atos golpistas contra a própria democracia.

A história recente do Brasil nos ensina o quanto pode custar caro a opção pelo esquecimento e pela impunidade. A transição da ditadura militar para a democracia, embora tenha permitido a reconquista das liberdades públicas, foi marcada por uma conciliação que impediu a responsabilização de agentes estatais que cometeram crimes hediondos contra opositores políticos. Sob a justificativa de que seria necessário um “acordo de pacificação nacional”, a Lei da Anistia de 1979 foi interpretada, em decisão lamentavelmente ainda prevalente no Supremo Tribunal Federal (ADPF 153), como abrangente também para os crimes comuns praticados por agentes da repressão — incluindo tortura, homicídios e desaparecimentos forçados.

Tal entendimento comprometeu a efetivação da chamada justiça de transição, que, conforme o direito internacional e a experiência comparada de outras nações que viveram períodos autoritários, exige a apuração, o julgamento e as devidas responsabilizações por graves violações de direitos humanos, além da garantia de memória e verdade, para que jamais se repitam tais episódios.

Hoje, o Brasil vive uma nova encruzilhada. A tentativa de golpe de Estado, articulada por altas autoridades do governo anterior, inclusive com o apoio ou conivência de setores das Forças Armadas, não pode ser relativizada ou esquecida. O episódio do 8 de janeiro não foi um ato isolado de vandalismo, mas o desfecho de uma escalada autoritária, sustentada por ataques sistemáticos às instituições, difusão de desinformação, deslegitimação do processo eleitoral e incentivo à ruptura democrática.

Diante da gravidade dos fatos e da robustez das provas apresentadas, o recebimento da denúncia pelo STF inaugura uma nova etapa na defesa da ordem constitucional: o julgamento daqueles que, valendo-se da autoridade pública e do aparato estatal, atentaram contra os fundamentos da República.

Esse processo judicial precisa ser conduzido com absoluto respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, valores que não foram respeitados nos tempos sombrios da ditadura — e que distinguem a justiça democrática da violência autoritária. Mas é imperativo que não se ceda, novamente, à tentação do esquecimento travestido de conciliação. Crimes contra a democracia, sobretudo quando cometidos por quem deveria protegê-la, são incompatíveis com qualquer forma de anistia.

A abertura desses processos é, pois, um sinal de maturidade institucional e um compromisso com as gerações futuras. Como bem demonstrado nos debates mais recentes no STF — inclusive com a reabertura da discussão sobre a extensão da Lei da Anistia e a análise de recursos sobre a responsabilização de crimes cometidos na ditadura — há um movimento de revisão crítica da história que pode, enfim, consolidar uma cultura jurídica e política fundada na responsabilização e na memória.

É tempo de aprender com os erros do passado e reafirmar, com coragem cívica, que democracia não se negocia. Justiça não se adia. E que, para que nunca mais se esqueça e nunca mais aconteça, é preciso, hoje e sempre, que haja verdade, justiça e, se for o caso, punição, na exata medida e proporção das respectivas e individualizadas responsabilidades, sem anistia.