O professor Paulo Freire em sua obra Pedagogia do Oprimido ao criticar a educação bancária – que transforma o aluno em um mero depositário de conhecimento sem qualquer desenvolvimento de senso crítico – afirma que a verdadeira prática pedagógica deve ser transformadora e libertadora. O grande pensador pernambucano concluí que “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.
Eis que na semana passada o Supremo Tribunal Federal nos fornece um exemplo pronto e acabado de que rapidamente quem foi oprimido, quando não possuí valores sólidos de formação na crença da liberdade e não adota em seu múnus profissional uma postura dialógica, inovadora e principiológica, quando passa a ocupar esferas de poder, trasmuda-se subitamente em opressor, açoitando com o mesmo chicote que fora antes chicoteado.
Refiro-me a autoritária decisão da lavra do Min. Cristiano Zanin ao julgar monocraticamente o RE nº. 1555431/RS. Em síntese, o Ministério Público ingressou com recurso de decisão do STJ que teria anulado um processo criminal em que o réu fora condenado mesmo existindo uma nulidade processual absoluta e insanável, pois a audiência de instrução designada para ouvir as testemunhas de acusação fora realizada sem a presença do promotor de justiça e o magistrado que presidia o ato fez às vezes da acusação, passando a fazer as perguntas próprias do acusador e as perguntas do julgador. Eis absoluta confusão de papéis processuais somente admissível em um processo inquisitório, sem qualquer respeito aos princípios agasalhados no art. 5º, LIV e LV da Constituição Federal (devido processo legal e seus consectários lógicos – contraditório e ampla defesa), além de ter sido conspurcado o querer do art. 212 do CPP.
Importante registrar que desde a vigência do Código de Processo Penal de 1941 tem-se a garantia da separação dos papéis destinados aos sujeitos processuais, cabendo ao Ministério Público oferecer a acusação formal e sustentar o pedido de condenação em nome do estado/sociedade, o advogado efetuar a defesa do réu de maneira ampla e o magistrado deve adotar uma postura equidistante das partes, julgando imparcialmente. Essa distribuição de cargas processuais foi acentuada com a Constituição Federal de 1988, passando-se a reivindicar a inserção do juiz das garantais como ferramenta moderna do processo penal brasileiro.
Eis que com enorme retardo, considerando que Europa implantou o juiz das garantais a partir da década de 80 do século passado, toda a américa latina passa a adotar esse sistema no início deste século e somente em uma Lei de 2019 (Pacote Anticrime – Lei nº. 19.964/19) foram inseridos os (art. 3º-A a 3º-F, CPP) criando a figura do Juiz das Garantias, afirmando categoricamente ser vedado ao juiz promover “a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
Mesmo questionada fortemente por órgãos da magistratura, a exemplo da AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros que buscava a declaração de inconstitucionalidade da lei afastando a aplicabilidade do juiz das garantias, o STF manteve o instituto hígido, sendo concedido prazo para a sua implementação.
Mesmo em se tratando de decisão que possuí uma clareza solar no sentido de que, quem julga não deve produzir prova da culpa do réu, tampouco substituir o sujeito processual que possuí essa responsabilidade, entendeu o Min. Zanin que o juiz poderia acusar e julgar ao mesmo tempo e que isso não feriria o sistema acusatório. Vejam só. Há bem pouco tempo atrás (ano de 2021) o advogado Cristiano Zanin fez chegar ao STF o HC nº. 164.493/PR, alegando a suspeição do juiz Sérgio Moro em razão de ter o ex-magistrado atuado em conluio com os Procuradores da República que integravam a força-tarefa da Lava-Jato.
Por maioria a segunda turma do STF entendeu que o juiz não pode combinar com a acusação uma linha de atuação. Nesse caso recentemente julgado o outrora advogado não viu nada demais na postura do juiz em fazer as vezes da acusação e de julgador – acumulando os papéis – tudo em um mesmo ato. Em uma metáfora pobre o juiz cobrou o escanteio e fez o gol de cabeça na pequena área. Impressionante como em tão pouco tempo alguém que chegou a escrever um livro denominado “Lawfare” criticando o ativismo judicial, o atropelo das garantias constitucionais e o estado de exceção processual, tenha exarado uma decisão que implica justamente em um exemplo pronto e acabado de lawfere.
O transcurso do lapso temporal de pouco mais de um ano e meio já os legou grandes lições do Min. Zanin como, por exemplo, quando votou a favor da execução imediata da pena do condenado pelo plenário do júri, determinou que os celulares dos advogados fossem lacrados, antes de iniciada uma audiência no STF e agora aplica o “Martelo das Feiticeiras” (Malleus Maleficarum), verdadeiro manual de uma justiça inquisitorial onde cabia ao juiz investigar, acusar e julgar, buscando a prova da culpa do réu, sem a mínima chance de questionar a conclusão do Tribunal do Santo Ofício. Talvez pretenda o ex-advogado Zanin, tão cioso das garantias de seus clientes, lutando com brio contra o decisionismo e as manifestações inquisitoriais dos magistrados, demonstrar que seu sonho sempre foi o rebaixar os advogados, validar o arbítrio, perseguir os garantistas, enfim, fazer contra todos os acusados e seus causídicos aquilo que abominava quando praticavam contra seus clientes ou ele próprio.
Infelizmente nesta empreitada ele não está só, pois conta com extensa rede de admiradores e são vários os ministros que pensam assim, não enxergando violação do sistema inquisitorial, mesmo em uma situação flagrante e aberrante.
O advogado antes zeloso do respeito às garantias, em pouco mais de um ano e meio usando a toga, esqueceu das agruras e do sofrimento daqueles que vestem beca e como dizia Francesco Carnelluti nas Misérias do Processo Penal, por vezes sentam no último degrau da escada ao lado do réu, sempre lhe estendendo a mão para ampará-lo.
A cereja do bolo dessa paradigmática decisão inquisitorial está na conclusão em que o neoinquisidor que rapidamente esqueceu que foi advogado, ao afirmar que “a mera ausência do Ministério Público na audiência de instrução e julgamento não gera nulidade automática dos atos praticados, sendo necessária a comprovação concreta de prejuízo para a parte que o alega, o que não ocorreu nos presentes autos. A condenação, em si, não comprova efetivamente que ocorreu prejuízo ao réu”.
De fato, essa alegação é capaz de corar frade de pedra. A condenação do réu não deve configurar um prejuízo para a defesa, em verdade a condenação deve ser encarada como um benefício ou favor libertatis do estado para com o réu.
Que falta faz uma verdadeira consciência de classe associada a uma educação libertadora. A vítima somos todos nós, quando o ofendido de hoje sonha em ser o agressor de amanhã.
Oxalá chegue o tempo em que o opróbio da vergonha pública tolha o espírito autoritário e eduque aqueles que olvidaram de onde vieram, o que sofreram e como a luta é árdua para não abrir mão de cada conquista.