ARACAJU/SE, 2 de dezembro de 2024 , 6:02:58

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Narcomilícia, política e poder

O país assiste estarrecido aos sucessivos episódios de violência demonstrando a força das milícias cariocas que atemorizam a população, ordenando toques de recolher e determinando a queima de ônibus no intuito de mandar recado às autoridades de segurança pública do estado.

O poder paralelo exercido pelas narcomilícias (união entre paralimilitares e traficantes) domina o Rio de Janeiro, decidindo quem pode transitar, o que pode acontecer na cidade, qual o julgamento a ser destinado aos seus próprios integrantes e aos adversários. É o fim do estado de direito. Tem-se o sequestro das instituições corroídas pela corrupção e a inserção do crime organizado nos órgãos estatais.

A milícia foi surgindo no início dos anos 80 com o advento de grupos de extermínio que passaram a ser tolerados e até estimulados por políticos populistas que fizeram carreira repetindo jargões do tipo “bandido bom é bandido morto”.

Depois passaram a concorrer com o tráfico e organizações criminosas já existentes, dominando comunidades, cobrando “taxa de segurança” dos comerciantes e moradores destas localidades, vendendo serviços como “gatonet” (TV a cabo pirata), entrega de botijões de gás, transporte alternativo em vans, grilagem de terrenos de propriedade do município e do estado, com construções ilegais de “condomínios”, comércio de armas e munições, enfim, transformaram o poder paralelo em algo rentável e com raízes profundas.

O diagnóstico desta situação caótica, preocupante e vexatória fora traçado de forma magistral na obra “A República das Milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro” (editora Todavia, 2020, 304p.) de autoria do jornalista e sociólogo Bruno Paes Manso, demonstrando o autor que as milícias (inicialmente exercida por ex-policiais expulsos da polícia militar, bombeiros e polícia civil) e depois ocupadas por líderes da própria comunidade, passaram a se interessar não só pelo tráfico de drogas e armas e pela venda de segurança, exploração de caça-níqueis e linhas de transporte alternativo, mas principalmente pelo exercício direto do poder.

Perceberam os milicianos que o atalho para aumentar seus negócios estava na aproximação com políticos inescrupulosos, cujas plataformas eram compostas de propostas sem qualquer compromisso com um mínimo de ética na gestão da coisa pública, gente que homenageia miliciano com medalhas e títulos de cidadania, parlamentares que nomeiam esposas, familiares e demais parentes de milicianos condenados por tráfico de drogas e homicídio, para o exercício de cargos em comissão em órgãos relevantes do estado.

A milícia passou a ocupar o poder por dentro, chegando ao ponto de em uma operação da Polícia Federal batizada de “Segurança Pública S/A” ter sido descoberta a existência do “aluguel de delegacias” em áreas que rendem “arrego” do tráfico, tudo com o conhecimento do secretário de segurança pública que depois foi eleito deputado estadual.

Aliás, a proximidade da narcomilícia com o poder, associada a corrupção desenfreada é responsável pela prisão, quase que concomitantemente, dos últimos 04 governadores, de mais de 10 deputados estaduais, do ex-procurador-geral de justiça e de conselheiros do Tribunal de Contas do estado do Rio de Janeiro.

O crime organizado definitivamente chegou nas instituições de estado, infestando-as, cupinizando-as completamente, deixando a população refém, trazendo resultados catastróficos ano após ano, fato após fato, notícia após notícia.

A ousadia é tamanha que nem mesmo uma intervenção federal (decretada em janeiro de 2018) com a utilização de GLO – Garantia da Lei e da Ordem, fora suficiente para conter o avanço das milícias e do crime organizado. Muito ao contrário, foi durante referida intervenção com a nomeação de generais para o cargo de interventor e de secretário de segurança, que assassinaram Marielle Franco e seu motorista, deixando claro que a narcomilícia não reconhece qualquer limite, não respeita o poder oficial, não se curva as regras jurídicas.

Os últimos acontecimentos como o incêndio de vários ônibus, o assassinato, por equívoco e em razão da semelhança física com um miliciano, de médicos que estavam em um congresso de ortopedistas, a execução no dia seguinte dos possíveis autores da chacina dos médicos, demonstram que cada milícia impõe sua força e sua lei.

Em recente entrevista coletiva, o atual governador do estado veio a público para dar um ultimato perante as câmeras de televisão, informando que envidará esforços para prender determinados líderes (por ele nominados, demonstrando uma intimidade que aponta como a narcomilícia está próxima do poder). Aduziu que após a prisão esses milicianos que aterrorizam o estado (contando quase sempre com a conivência da polícia e das demais autoridades, inclusive o Judiciário que muitas vezes concede inexplicáveis habeas corpus) serão encaminhados para presídios federais de segurança máxima.

Essa promessa não parece crível, especialmente quando referido governante está cercado de políticos que têm sua base eleitoral em locais comandados por milicianos, sendo que referido domínio territorial sempre se reverte em votos nos períodos eleitorais, chegando-se ao extremo de não ser permitida a campanha de determinados candidatos em algumas localidades, sendo esta realidade pública e já declarada pela própria Justiça Eleitoral.

Impossível imaginar que o estado efetivamente vai enfrentar a milícia quando se suspeita que nomes do alto escalão da polícia do Rio de Janeiro possuem ligações com milicianos. Improvável que exista combate às milícias por quem fez carreira política rodeado de pessoas próximas de milicianos.

Existe mais que cumplicidade entre o poder oficial e a milícia. Tem-se a comprovação de que o crime organizado está investindo na obtenção de mandatos, na eleição de representantes, no ingresso formal nas instituições.

As propostas que normalmente são apresentadas em momentos de crise mais aguda, tais como o endurecimento da lei penal ou enfrentamento do crime organizado pelos métodos tradicionais, resultando quase sempre na morte de vários inocentes, no uso de pirotecnia e em muito discurso, não resolvem, não buscam o cerne do problema, tampouco têm o condão de arrostar o mal provocado por essa relação promíscua já consolidada entre a milícia e o poder político.

É preciso que a população entenda a gravidade da situação, não aceite votar em candidatos ligados a narcomilícia, não sucumba a pressão dos milicianos, não permita a apropriação do estado pelo crime organizado.

Fundamental, também, que o governo federal atue com rigor, não apenas proferindo discursos impactantes ou decretando Garantia de Lei e Ordem, mas permitindo a federalização da apuração de vários crimes que chocam o país, a atuação dos órgãos de segurança nacional e principalmente promovendo um expurgo (após investigação e processo em que sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa) de todos os policiais e políticos envolvidos com a narcomilícia.

Por fim, acredita-se que a principal mudança é política. Não permitir a eleição de quem é apoiado ou tem ligações com milicianos, de quem homenageia o crime organizado, de quem condecora ex-policiais que integraram organização criminosa.

Somente quem pode iniciar essa mudança é a própria população dos grandes centros, começando pelo Rio de Janeiro. Urge que o apoio das instituições estatais federais permita a limpeza e profilaxia que precisa ser iniciada de forma profunda, com coragem, critérios e honestidade.

Existe um longo caminho a ser trilhado na batalha para afastar o crime organizado do estado, expurgando delinquentes da política, combatendo a corrupção e as falhas institucionais, inserindo uma nova cultura e republicanizando o estado e seu povo.