ARACAJU/SE, 13 de outubro de 2025 , 14:04:47

O advogado e o mar

 

José Rollemberg Leite Neto

Ernest Hemingway escreveu, em 1952, um pequeno romance, quase uma novela, que lhe rendeu o Pulitzer, em 1953, e abriria caminho para o Nobel, em 1954: “O Velho e o Mar.” 

A história é como uma parábola. Santiago, um pescador idoso, está há mais de oitenta dias sem conseguir fisgar nada. Obstinado, segue a enfrentar, todos os dias, sozinho, o mar desafiador. Em certa jornada, depois de longa luta, com coragem e resiliência, captura um enorme marlim de mais de quatro metros de comprimento. 

Era o maior peixe que já pescara em sua vida, maior até do que o seu pequeno esquife. Por isso, o animal vencido é amarrado à lateral do barquinho e assim o acompanha de volta à praia.

Surgem os tubarões. Atraídos pelo sangue, atacam o marlim. Santiago defende-o como pode, mas, diante dos cardumes de predadores, exausto e desarmado, não consegue deter a voracidade das feras marinhas. Ao chegar em terra, restava do peixe apenas o esqueleto: a prova de seu trabalho perdido. O velho retornou destruído, mas não vencido. Era um lutador digno, consciente de que seu esforço não teve utilidade. Guardou a sensação amarga de uma conquista sem serventia.

O cotidiano do litigante contra a fazenda pública lembra a contenda de Santiago. O processo judicial é um mar vasto, insondável, muitas vezes indiferente ao esforço humano que nele se deposita. Quando virá o peixe? Não se sabe nem sequer se virá. O advogado lança suas redes e anzóis sob forma de petições, despachos, audiências, memoriais, recursos, sustentações, sem garantia alguma de retorno. O tempo passa, os autos se avolumam, e a maré da burocracia ameaça engolir a esperança no vórtice dos anos adunados.

Quando a decisão favorável chega ao estágio de trânsito em julgado, quando o Judiciário enfim reconheceu o seu direito contra o Estado, o cidadão tem a sensação de fisgar o grande peixe. Mas, como no texto de Hemingway, isso é apenas o início de outro suplício.

No caminho entre a decisão definitiva e o pagamento efetivo, surgem os tubarões. Mais burocracia na fase de execução. Orçamentos escassos, com limitações ao pagamento de precatórios. Expedientes protelatórios do devedor, com questionamento de vírgulas de ofícios. Interpretações restritivas de julgadores, que reveem o que já se decidiu. 

Isso tudo é muito ruim. Mas há coisa ainda pior: as resistências da máquina política ao uso de recursos públicos para quitar dívidas que os erros de gestões anteriores produziram. 

Por que deveria o administrador atual quitar os débitos que antecessores geraram? Isso atrapalharia os próprios projetos de gestão (e a prática de seus erros novos, que gerarão dívidas para outros pagarem no distante futuro). Melhor empurrar a pendência para adiante. Por que pagar um precatório de uma desapropriação realizada pelo prefeito/governador de 20 anos antes se com esse mesmo dinheiro pode-se construir um hospital novo?

Para além dessa resistência política, os negociantes aparecem: há gente que, diante do desespero do credor, se dispõe a comprar o precatório com deságios absurdos. Financeiras especializaram-se nisso. Onde há oportunidade, há empreendimento. 

Pior: o próprio devedor estatal tem estímulo para não obedecer a fila de credores, com a oferta de descontos aos que desejem receber antes dos demais, em troca de um pagamento menor. É a chantagem autorizada pelo direito: ou dá desconto, ou receberá nas calendas.

O título judicial é dilacerado pedaço por pedaço. Ao fim, restará ao dono do direito apenas a carcaça dele.

Nesse cenário já degenerado, o Congresso deteriorou ainda mais as coisas: promulgou, em 9 de setembro de 2025, a Emenda Constitucional 136, que alterou novamente o regime dos precatórios. 

Em linguagem árida, de índole fiscal, ela oficializa a inadimplência como política de Estado para a maior parte dos entes federativos. 

A União, é verdade, ainda mantém a previsão de pagamento dentro do orçamento anual, embora com restrições e limites. Mas o drama se agrava para os credores de estados e municípios: para eles, essa emenda autoriza parcelamentos longos, moratórias disfarçadas, manobras contábeis que inviabilizam a quitação da dívida judicial estatal em tempo razoável.

Na prática, significa que quem litiga contra um ente subnacional, muitas vezes por vencimentos não pagos, aposentadorias e pensões atrasadas, indenizações devidas, vê seu direito convertido em suplício. 

Vale exemplificar. Imagine-se uma criança que perdeu o pai assassinado por um agente público estadual em serviço. Ela possivelmente verá o precatório quitado quando já estiver com idade de formatura em grau superior. 

Não é exagero. A espera de pagamento atual em boa parte dos estados excede dez anos, contados da inscrição do precatório. Quando se acresce a isso o tempo precedente do processo judicial de conhecimento e a fase de cumprimento, vê-se a medida da ignomínia.

O sistema jurídico brasileiro engendrou um suplício de Tântalo moderno. 

O regime dos precatórios já nasceu marcado pela postergação. O art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em 1988, instituiu um parcelamento inicial de oito anos para as dívidas então pendentes. De lá para cá, mais de uma dezena de emendas constitucionais adulteraram o art. 100 da Carta, cujo texto original tinha apenas dois parágrafos e hoje ostenta inacreditáveis trinta, além de dispositivos espalhados pelas disposições transitórias. Cada mudança dessas representou apenas mais um adiamento, transformando títulos judiciais em uma promessa estatal sempre adiada.

Estudos indicam que os estados deviam 110,4 bilhões de reais em precatórios atrasados ao final de 2024, enquanto os municípios deviam 82,9. É muito dinheiro longe do verdadeiro dono. É 1,65% do PIB. Juntos, representam mais do que todo o orçamento anual do Programa Bolsa Família, mais do que o valor de mercado do Banco do Brasil.

A nova emenda estabeleceu um teto anual de pagamento vinculado à Receita Corrente Líquida do exercício anterior, oscilando entre 1% e 5% conforme o estoque de precatórios. 

A atualização monetária passou a adotar o IPCA acrescido de 2% ao ano de juros simples, mas limitado ao menor valor quando comparado à Selic. 

O resultado é perverso: o devedor estatal tem incentivo para atrasar, já que a correção tenderá a ser inferior à perda real sofrida pelo credor. 

Entes que vinham pagando em dia, em vez de serem premiados, agora são estimulados a reduzir seu esforço para se alinhar ao piso mínimo. É a institucionalização da procrastinação.

Mas há alguma esperança. O Supremo Tribunal Federal já declarou inconstitucionais artifícios semelhantes. Rechaçou limites desvinculados da dívida real por ofenderem a coisa julgada e a separação de Poderes (ADIs 7047 e 7064). Também afastou a Taxa Referencial (TR) para correção de precatórios, por não refletir a inflação efetiva (ADIs 4357 e 4425). 

Agora, a Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou a ADI 7873 contra a EC 136/2025, com a indicação da violação a inúmeras cláusulas pétreas da Constituição, especialmente a garantia da coisa julgada e o direito de propriedade dos credores. O relator é o Ministro Luiz Fux. Não houve apreciação do pedido liminar de suspensão. Espera-se que o julgamento de mérito não tarde.

Enquanto isso não é resolvido, o suposto equilíbrio das contas públicas é construído sobre o desequilíbrio da justiça. O sacrifício recai sempre sobre o mesmo pescador: o cidadão que ousou enfrentar o Leviatã estatal e, mesmo exitoso, retorna de mãos vazias.

Uma reforma séria do regime de precatórios exigiria enfrentar, de modo simultâneo, a irresponsabilidade fiscal proposital e a ineficácia judicial involuntária. 

O Estado precisa ser constrangido a pagar não só pela força da obrigação moral de obedecer a um comando judicial, mas pelo custo do atraso. Em certos casos, pela responsabilização pessoal do gestor culpado da dívida e daquele que gerou o atraso no pagamento.

Especialistas sugerem vincular os juros da mora ao custo real do endividamento público, instituir fundos garantidores com receitas carimbadas e criar mecanismos de execução fiscal reversa, em que o ente inadimplente tenha parte de suas transferências voluntárias bloqueadas até a quitação das condenações. Além disso, seria imaginável permitir a compensação controlada de créditos judiciais com débitos tributários, sob supervisão do Judiciário e do Tesouro, e estabelecer metas de redução de estoque fiscal auditadas pelo CNJ. 

Não faltam instrumentos; falta vontade política de tratar a dívida judicial como obrigação verdadeira, não apenas como ficção contábil.

Sobram algumas perguntas: qual o valor de uma Constituição que chancela a injustiça? De que serve derrotar o Estado em juízo, provar que ele estava errado, se a vitória não se concretiza em reparação em tempo idôneo? Que dignidade resta ao cidadão quando sua conquista é transformada em agonia?

Talvez reste apenas o testemunho. Como Hemingway registrou a coragem e a perseverança de Santiago, cabe ao advogado documentar e compartilhar a ousadia e a perseverança do jurisdicionado. Continuar lançando as redes, mesmo sabendo que o mar é indiferente, que os tubarões virão, que a vitória pode nascer só para ser devorada.