ARACAJU/SE, 22 de outubro de 2024 , 10:22:54

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O educador e o inquisidor

 

Quando o Estado de Direito sucumbe, a razoabilidade fenece com ele. Quando a democracia míngua, a lógica também se esvai. 

Paulo Freire, uma das principais figuras da educação mundial, tornou-se referência de uma pedagogia baseada no diálogo e na emancipação humana. Em 1964, ele foi preso pelo recém-instalado regime militar que o via como uma ameaça ao mando estabelecido. Por força de um injustificável inquérito policial-militar, o educador foi mantido enclausurado por mais de 70 dias, muitos dos quais em cela solitária. Foi submetido a dois interrogatórios surreais.

Freire, em 1963, organizara o “Experimento de Angicos”, no Rio Grande do Norte, ensinando agricultores a ler em 40 horas. Nessa época, o Brasil tinha 40% da população adulta totalmente analfabeta. Ele via a alfabetização como um instrumento para a consciência crítica. Todavia, seu método foi rotulado pelo regime militar como parte de um plano de “comunização do Nordeste”. O que para Freire era acesso a um direito fundamental, o regime interpretava como uma ameaça. Paranóia.

Os interrogatórios, transcritos no livro “A Ditadura Interroga o Educador”, organizado por Joana Salém Vasconcelos e publicado pela Editora Elefante, retratam essa experiência absurda. Inquirido pelo Tenente-coronel Hélio Ibiapina, Freire foi forçado a justificar seus métodos pedagógicos. As suas explicações demonstravam quão incompreensíveis eram as acusações que enfrentava. As perguntas careciam de base lógica.

Freire foi obrigado a explicar o fundamento de seu método: “Partindo de uma série de pressupostos (…), entre eles o de que o homem, pessoa, e, por isso, sujeito, sabe, tentou um método ativo que fosse capaz de levar o homem cada vez mais a saber melhor. Fundamentou-se numa posição socrática – a dialogal, amorosa, humilde, criadora, e, por isso tudo, comunicativa. (…) Parecia possível ao depoente fazê-lo através de um método ativo, dialogal, que iniciasse o adulto analfabeto na discussão realmente importante do mundo da natureza e da cultura. E isto nunca tinha sido feito, sobretudo do modo como o depoente o realizou. E este debate é fundamental para a descoberta que faz o analfabeto do papel do homem no mundo e com o mundo.”

Ele foi confrontado com a ideia de que estaria politizando os alunos por meio de sua metodologia de conscientização. Respondeu: “A conscientização é o desenvolvimento da tomada de consciência. Conscientizado, quer dizer, mais reflexivamente organizado, o homem opta. Quando opta, prepara-se para politizar-se. O depoente jamais defendeu a politização, porque entende que ninguém politiza ninguém e, quando se tenta fazê-lo ou se faz, já não se educa, indoutrina-se, desrespeitando-se a pessoa humana.”

Arguido sobre o conceito de “opção” em sua metodologia, que colocava o educando como sujeito ativo de seu próprio aprendizado, explicou: “Opção é escolher livremente. Que não há opção sem liberdade de escolha, daí que, nos regimes ditatoriais, não haja opção, mas imposição. Na democracia, é possível optar.” O fato de um educador ser interrogado por defender a liberdade de escolha é emblemático da distorção de valores que caracterizava o regime fardado.

O caráter distópico do inquérito se intensifica quando Freire é questionado sobre possíveis semelhanças de seu método com regimes autoritários: “Perguntado se reconhece que o seu suposto método, mesmo na parte de conscientização e politização, não contém originalidade face aos métodos usados por Hitler, Mussolini, Stálin e Perón, respondeu que, em face do que já expôs, jamais poderia o depoente reconhecer qualquer semelhança, até longínqua, entre o seu trabalho e métodos empregados por Hitler, Mussolini, Stálin ou Perón. Para Hitler, Mussolini, Stálin ou Perón, o homem não passava de mero objeto. Que lhes interessava era a sua redução a coisa, que eles pudessem manipular em função de seus interesses. Seus métodos, por isso mesmo, teriam de ser os que escravizassem o homem à força dos mitos, nunca os que desrespeitassem a pessoa humana.”

Disse mais: “O depoente por convicção não aceita as coisas rígidas, sem que isto signifique rejeitar a ordem e a disciplina. Não aceita os esquemas rígidos porque os considera limitadores da inteligência do homem.” O regime, que impunha controle e rigidez, via a recusa de Freire em aceitar esses limites como uma subversão em si, evidenciando o quanto suas ideias eram incompreendidas e distorcidas.

A pressão absurda também se manifestou nas perguntas sobre os supostos “royalties” que Freire teria recebido pelo uso de seu método. “Perguntado quanto custou ao governo federal a ‘patente’ do seu método de ‘conscientização’ e ‘politização’, respondeu que nunca tirou patente de seu método. Perguntado, até o presente momento, de que estados ou territórios da federação recebe ‘royalties’ pela aplicação de seu método de ‘conscientização’ e ‘politização’, respondeu que de nenhum.” A linha de questionamento reforça o “non sense” do que Freire passava, sendo forçado a responder a acusações que não faziam sentido.

Esse contexto remete a uma situação disparatada: o absurdo das acusações, a opacidade das intenções e a desumanização implícita no tratamento dado a um intelectual que buscava apenas ajudar a erradicar o analfabetismo. O paradoxo é evidente: um educador que via o diálogo como ferramenta de emancipação foi silenciado por um regime que não tolerava a autonomia intelectual. 

Solto, temendo novas violências, iniciou um exílio de 16 anos. Durante esse período, suas ideias ganharam força em diferentes contextos, consolidando sua visão de uma educação emancipadora. Reconhecido como Patrono da Educação Brasileira, Freire é um educador, pedagogo e filósofo de alcance global. Sua contribuição ao debate educacional é indiscutível: detém o maior número de títulos de “doutor honoris causa” entre brasileiros, com 29 honrarias concedidas por universidades europeias e americanas, além de prêmios como o Educação pela Paz, da Unesco. 

Sua relevância é indiscutível, abonada por sua posição como o terceiro pensador mais citado nas ciências humanas, segundo a London School of Economics. O Google Scholar também confirma essa informação. Está à frente de Michel Foucault, John Rawls e Pierre Bourdieu, por exemplo. 

Foi um inovador. Para que se tenha uma medida, sua teoria dialógica, expressa em “A Pedagogia do Oprimido” é de 1968. A teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, provavelmente o maior filósofo vivo atualmente, é de 1981. Apesar de diferenças, ambos os teóricos estão interessados na centralidade do diálogo, na razão comunicativa, na emancipação e na intersubjetividade. Mas Freire veio antes. Apesar do prestígio internacional, sua obra ainda enfrenta resistência e desinformação no Brasil. Por cá, há sempre inquisidores nas sombras.