ARACAJU/SE, 23 de novembro de 2024 , 23:12:21

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O ginete e o elefante

Em 2006, o Ministro Carlos Ayres Britto deu uma entrevista ao portal Consultor Jurídico, para comentar como era a sua atividade como membro do Supremo Tribunal Federal. Disse: “O nosso dia-a-dia operacional é de surpreendente descoberta das potencialidades da atual Constituição. Uma Constituição cuja exuberância de normatividade exige de todos nós um novo par de olhos. Um renovado visual das coisas, que será tanto mais agudo quanto derivado de uma combinação mais equilibrada entre o pensamento e o sentimento do intérprete. Afinal, já dizia Tobias Barreto, ‘o Direito não é só uma coisa que se sabe; é também uma coisa que se sente’. E como esquecer que o substantivo sentença vem do verbo sentir?”

Esse protagonismo do sentimento é algo que pouco se afirma ou se reconhece nas discussões jurídicas. A estrutura clássica do pensamento jurídico se formata como um silogismo. É como se ensina. É como se discursa. É dogma. Não se concede papel algum à emoção nessa arquitetura.

Ayres Britto não enxerga as coisas assim. Já aposentado, em depoimento ao projeto “História Oral do Supremo” da Fundação Getúlio Vargas, falou coisa ainda mais interessante, ao comentar os votos mais relevantes que proferiu: “Todos os meus grandes casos partiram de uma intuição, todos, sem exceção. Aliás, isso não é nem novidade, porque Einstein também disse que ‘nunca soube de uma grande descoberta científica que não partisse de uma intuição’. Isso é dele. Agora, é claro que não basta intuir; é preciso refletir sobre aquilo que foi intuído para verbalizar e escrever, fazer as conexões, demonstrar que o acerto… É preciso queimar pestanas.”

A resposta vem em intuição, o raciocínio vem depois. Ele explicou o percurso: “Mas, antes de você queimar fosfato ou pestanas, você, quanticamente, se vê ejetado para o topo da escada do conhecimento, sem precisar subir nenhum degrau. Você não sobe nenhum degrau; você é catapultado. Você faz síntese sem precisar de análise. Você chega às sínteses, às grandes sínteses sem precisar de nenhuma análise. Aí você faz a viagem de volta para convencer os outros e justificar e fundamentar tecnicamente – tem que fundamentar tecnicamente, nos dispositivos.”

A justificativa é para os outros. É para buscar âncoras para o que foi sentido. Foi didático: “O conhecimento lhe chega não é por reflexão. A reflexão é mental, faz parte da inteligibilidade, é eminentemente intelectual, é abstrata, metódica, processual. Então você vai, fase por fase, avançando na direção do conhecimento, como quem avança por um terreno minado, com todo o cuidado, todo o cuidado, transpondo obstáculos, até chegar. Mas você pode chegar ao âmago, à carne do real quanticamente, ou seja, num salto, num súbito de percepção. Você apanha, num súbito de percepção, a realidade, porque você conversa com a realidade, se disponibiliza para ela e dá a ela oportunidade de falar sobre si mesma. É ela que fala sobre si mesma e transmite. O processo criativo é isso.”

Existe, portanto, também um caminho racional, mas ele é difícil e mais lento. A intuição chega no real com maior facilidade.

Essa mesma percepção do fenômeno jurídico consta de diversos dos votos dele. Isso fez – e ainda faz – muita gente torcer o nariz. A suposição do senso comum jurídico é a de que se decide – sempre! – em bases racionais e reflexões. As emoções não têm papel decisivo. Devem, inclusive, ser evitadas.

Ao que tudo indica, apesar das resistências, o Ministro Ayres Britto exprimiu corretamente o processo decisório e foi absolutamente sincero ao declará-lo. Cientistas da psicologia comportamental como Jonathan Haidt, da Universidade da Virgínia (UVA), corroboram sua percepção. 

Em seu excepcional livro “A mente moralista”, de 2020, aprimorando ideias de obras anteriores, Haidt propõe uma metáfora para entender a mente humana: ele compara a psique a um ginete montado em um elefante. 

O ginete representa a razão, responsável pelo raciocínio consciente e pelas decisões mais complexas, enquanto o elefante simboliza o irracional, os pensamentos automáticos provocados por emoções, desejos e intuições.

Haidt argumenta que, embora o elefante seja visto como irracional, ele também constitui uma forma de processamento de informações. Sem ele, o ginete não conseguiria tomar todas as decisões. Imagine se fosse necessário raciocinar para cada pequena ação diária. O esforço seria brutal. A intuição/emoção simplifica processos. Ao planejar uma viagem, o ginete decide o roteiro, o orçamento e o horário de saída. Contudo, adentrada a estrada, a maioria das ações passa para o modo automático. Em situações críticas, como ao encontrar uma cobra, o medo entra em ação automaticamente e a fuga ocorre antes que o ginete perceba o que está acontecendo. Nesse caso, é o elefante quem comanda.

O elefante se sente preparado para a maioria das questões e age rapidamente, intuitivamente. Já o ginete é mais lento, precisando pensar antes de agir. A diferença de tamanho entre os dois demonstra o quanto é difícil controlar esse “animal” interno. O elefante comanda a maioria dos comportamentos e, muitas vezes, faz isso de forma oculta, inconsciente. O ginete, por sua vez, ao perceber a situação, inventa uma explicação “post hoc” para o que o elefante acabou de fazer, num jogo mental próximo à confabulação. Segundo Haidt, o ginete serve ao elefante, uma vez que o raciocínio baseado na linguagem evoluiu para ser útil ao processamento irracional.

Além disso, o raciocínio é influenciado por vieses cognitivos, erros sistemáticos na forma como são processadas as informações, o que dificulta a manutenção para o homem do título de “ser racional”. Haidt sugere que a mente é dominada por processos automáticos e intuições (o elefante), enquanto os processos controlados e racionais (o ginete) são secundários e justificam as ações do elefante. Em outras palavras, o ginete é mais um advogado do que um cientista, defendendo o cliente (elefante) em vez de buscar a verdade. É também um relações públicas, que organiza a comunicação do que já está decidido. 

Isso tem por fundamento em pesquisas empíricas de diversos psicólogos, biológos, antropólogos e neurocientistas. Não é uma mera especulação.

Para Haydt, por sua índole social, a evolução ensinou ao ser humano que a sobrevivência está mais relacionada à reputação do que à sinceridade, fazendo com que as pessoas busquem parecer certas mais do que estar certas. O quanto os outros enxergam de alguém é – e sempre foi – mais relevante para a sobrevivência do que o que essa pessoa efetivamente pensa. Pertencer ao grupo garante viabilidade existencial.

No entanto, isso não quer dizer que o ginete não possa eventualmente resistir ao elefante. Mediante a absorção de informações, especialmente aquelas vindas de terceiros com força moral e credibilidade suficientes para despertar novas intuições e emoções, o ginete pode ser forçado a refletir e ponderar suas emoções. A necessidade de agradar a esses terceiros ou ao grupo social a que se pertence pode exigir novos processos de reflexão, permitindo que o ginete desafie o domínio do elefante e promova uma mudança real no comportamento e na tomada de decisões. O esforço, no entanto, será imenso.

Em suma, a interação entre o ginete e o elefante na mente ilustra como as emoções e a razão estão entrelaçadas no processo de tomada de decisão. Enquanto o elefante impulsiona ações com base em intuições e respostas automáticas, o ginete justifica e racionaliza essas ações, criando uma aparência de lógica e racionalidade. No entanto, a influência externa de figuras respeitadas e/ou de grupos sociais pode despertar novas emoções e reflexões, permitindo que o ginete desafie e, ocasionalmente, controle o elefante. Isso demonstra que, embora a razão muitas vezes sirva às emoções, ela também tem o potencial de orientá-las e moldar nossas decisões de maneira significativa. 

Se Ayres Britto e Haydt estiverem certos, como parecem estar, toda a lógica da “persuasão racional” – que baliza o discurso jurídico formalmente – precisará ser ajustada para a “persuasão emocional”. Uma perspectiva raramente explorada e desconhecida. Uma novidade epistemológica. É o “novo par de olhos” a que se referiu o ministro, em 2006.