Os lamentáveis e reprováveis fatos praticados no dia 08 de janeiro de 2023, liderados por grupos de extrema-direita que almejavam concretizar um golpe de estado, culminando em um ataque orquestrado aos poderes da República, invadindo, depredando e agredindo o Congresso Nacional, o STF e o Alvorada, tiveram seu julgamento iniciado perante o Supremo Tribunal Federal.
Particularmente entendo que estes processos possuem uma série de equívocos constitucionais e procedimentais, a começar pelo desrespeito à garantia do Juiz Natural estampada no art. 5º, LIII, da Constituição Federal que assegura o direito aos acusados de somente serem presos ou processados pelo juiz competente.
Não consigo enxergar como a ofensa a estrutura física e ao patrimônio público do STF, do Congresso Nacional e do Poder Executivo, sem agressão direta aos seus integrantes e inexistindo o envolvimento ou liderança identificada de alguém com foro especial por prerrogativa de função poderia tornar a Suprema Corte competente para processar e julgar ações penais originárias deflagradas contra vândalos tresloucados que merecem ser punidos, após o devido processo legal com a estrita observância de seus consectários lógicos (contraditório e ampla defesa), agasalhados no art. 5º, LIV e LV da Constituição da República.
Os réus golpistas não devem ser processados e julgados perante o mais elevado tribunal da nação, quando este não é o foro competente, não se apresentando como idôneo o argumento de que a competência decorre de previsão contida no Regimento Interno do STF ou em razão da ofensa à Suprema Corte de forma genérica.
Além de foro incompetente, tem-se rito inadequado, considerando que os processos criminais que tramitam perante os tribunais e cortes superiores devem observar a ritualística contida na Lei nº. 8.038/90, mesmo neste caso inexistindo réus com prerrogativa de função (ao menos até o momento nenhuma denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República perante o STF aponta réus ocupantes de cargos que ensejem o foro especial).
Referida agressão à Constituição Federal é grave e preocupante, entrementes, o pior está por vir. Deflagra-se perante o foro incompetente, com a incidência de rito equivocado, inúmeros processos envolvendo mais de 1.000 pessoas (Ações Penais Originárias), sendo inaugurados feitos criminais que devem apurar a prática dos ilícitos de abolição violenta do estado democrático de direito (art. 359-L, CP), golpe de estado (art. 359-M, CP), dano qualificado ao patrimônio público (art. 163, parágrafo único, III, CP), dano ao patrimônio histórico tombado (art. 63, Lei nº. 9.6058/98) e associação criminosa armada (art. 288, parágrafo único, CP), imputando fatos típicos cujas penas podem ultrapassar 15 anos de reclusão, além da fixação de multas elevadas e do pedido de condenação em dano moral coletivo, sem o adequado respeito ao direito de defesa, garantia constitucional sagrada e inerente a existência de qualquer democracia.
Convém antes de apontar o menosprezo e espezinhamento ao sacrossanto direito de defesa, registrar que reputo todos os crimes arremessados em desfavor dos réus como gravíssimos, reafirmando que não deve a sociedade brasileira ter tolerância com golpistas, fascistas, pessoas que defendem discursos de ódio e são responsáveis por práticas, gestos e posturas antidemocráticas.
Entretanto, mesmo para os equivocados defensores do autoritarismo como resposta ao resultado de eleições livres, pessoas que possuem o germe do fascismo inoculado em suas ideias, quando acusadas criminalmente, devem ter o indisponível direito de defesa respeitado.
Por mais grave, abjeto e hediondo o crime cometido, tem-se que, em um estado democrático de direito, a ninguém é legítimo acusar sem dar direito ao contraditório, processar sem permitir a oportunidade de produção de provas e contraprovas, julgar e condenar sem assegurar o pleno exercício da ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes.
Não por outro motivo o grande Rui Barbosa ao responder a carta de seu amigo e notório criminalista Evaristo de Moraes, naquele que viria a se transformar em verdadeiro libelo em favor do direito de defesa, afirmou que “Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas” (O dever do advogado, editora HB, p. 36).
Uma das principais formas de se implementar o direito de defesa diz respeito a materialização da participação do advogado no julgamento, possibilitando a apresentação de sustentação oral, alegando todos os fatos e elencando os argumentos que entender pertinentes, deduzindo sua tese jurídica, dialogando com os julgadores, desincumbindo-se do múnus da defesa em sua amplitude constitucionalmente assegurada.
Cuida-se a sustentação oral de prerrogativa essencial da advocacia, estando positivada no art. 7º, IX, da Lei nº. 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB), sendo assegurada a oportunidade do advogado falar perante o tribunal pelo prazo de 15 minutos, se tempo maior não lhe for concedido.
Registre-se que nem mesmo durante os anos de chumbo da ditadura militar, na vigência dos Atos Institucionais (a exemplo do famigerado AI-5 que suspendeu o direito ao habeas corpus), a presença do advogado no julgamento deixou de ser garantida pelo Supremo Tribunal Federal que assim afirmou: “pelo sistema processual brasileiro, a presença física do réu e do seu advogado contempla o sistema da ampla defesa constitucional” (HC 52.106-SP, j. 31.05.74).
Para perplexidade de todos os profissionais do direito, passou o STF na análise do mérito dos “atos antidemocráticos” a pôr em prática a sumarização do processo penal, realizando julgamentos perante o plenário virtual (ao invés de uma decisão amparada nos debates e na dialética refletida, partiu-se para objetividade e assepsia de um julgamento não presencial (virtual), aplicando a “dialética do agora”, valendo-se de um rito sumaríssimo), impedindo os advogados de apresentarem sustentação oral e deduzirem seus argumentos no escopo de refutar a acusação e dialogar com a decisão judicial.
Segundo esse procedimento sumarizante a sustentação oral deve ser exercida com o envio de um vídeo para o STF contendo as teses da defesa, havendo a informação de que referido arquivo será disponibilizado e assistido pelos magistrados que possuem um prazo para inserirem seus votos eletrônicos no sistema do Supremo Tribunal. Eis um armengue absolutamente autoritário.
Referida situação criou um paradoxo: nos julgamentos de atos antidemocráticos vale-se o STF de uma postura antidemocrática, arbitrária e temerária, agredindo o direito de defesa, aplicando um processo penal completamente sumarizado, precário e totalmente voltando para o resultado, sem preocupação com as formas e principalmente com a essência.
Se a ninguém é dado o direito de menosprezar a Constituição Federal, com muito mais razão falece legitimidade e causa espanto quando referida postura parte da Suprema Corte, ainda que revestida de argumentos aparentemente voltados para o bem comum. Sempre devemos questionar: quem nos salva da bondade dos bons?
Em matéria de processo penal, forma é garantia e garantia é liberdade. Não permitir aos réus (independentemente da crime a que respondam) o direito à ampla defesa (sendo a sustentação oral desdobramento lógico deste direito) significa o sacrifício de princípios constitucionais no altar das circunstâncias e das conveniências.
É preciso dizer não a essa postura e assegurar que todos os acusados, independentemente do crime, pouco importando a condição econômica e a ideologia política praticada, devem ter assegurados o direito de defesa, em julgamentos em que se promova a análise de mérito na presença do advogado constituído ou público que deve estar apto a apresentar sustentação oral e deduzir os argumentos favoráveis ao réu.
A adoção de ritos sumários e que diminuem o direito de defesa deslustra o Supremo Tribunal Federal e inquinam o julgamento com a pecha do arbítrio.