ARACAJU/SE, 30 de dezembro de 2025 , 11:49:17

Papai Noel e Iansã sob suspeita

 

A abertura de inquérito policial contra integrantes da banda Garotos Podres, por causa da música “Papai Noel, Velho Batuta”, expôs mais do que uma controvérsia cultural. O episódio revelou que o Estado acionou o sistema penal para responder a conflitos simbólicos. Para tanto, ignorou contexto, linguagem artística e jurisprudência constitucional consolidada. Faltou bom senso.

Isso aconteceu na Paraíba, em fevereiro de 2025. Após um show, a banda teve contra si aberta uma investigação por conta de seu repertório. Segundo um cidadão noticiante, haveria músicas de suposta incitação criminosa ou de índole homofóbica. No entanto, elas não foram executadas. Todavia, uma de suas letras ficou retida no filtro policial.

Lançada em 1985, essa canção usa exagero e violência verbal típicos do punk rock para criticar o consumismo e a desigualdade social. O refrão afirma que “Papai Noel, velho batuta / Rejeita os miseráveis”. Ela acusa o personagem de “porco capitalista” e repete que ele “presenteia os ricos (que cospem nos pobres)”. Em outro verso, a letra diz: “eu quero matá-lo / nós vamos sequestrá-lo / e vamos matá-lo”. A música também declara que “aqui não existe Natal”. Essa linguagem (grosseira e pueril) funciona como fórmula provocadora, não como promessa ou instrução de violência real.

Ainda assim, a conduta da banda parou em um inquérito. Um integrante prestou depoimento à polícia. Durante o interrogatório, o baterista precisou explicar a uma delegada que “Papai Noel não existe”.

Em 28 de novembro, a Justiça da Paraíba arquivou a investigação “por falta de provas”. Concluiu que a acusação se baseou em conteúdos retirados da internet, sem que as músicas apontadas fossem executadas no show objeto da reclamação e sem que houvesse indícios de crime. Talvez fosse mais correto dizer que os fatos eram indiferentes ao Direito Penal.

Em 11 de novembro deste ano, outro episódio revelou semelhante lógica distorcida. Em São Paulo, um pai acionou a Polícia Militar após a filha, de quatro anos, participar de uma atividade escolar que envolvia desenho e referências à cultura afro-brasileira. Ela desenhou Iansã: eis o grave delito. No dia seguinte, policiais armados entraram na escola infantil para apurar a ocorrência (leia-se: intervir em um ato pedagógico regular). A atividade seguia diretrizes legais de ensino de história e cultura afro-brasileira. Mesmo assim, o Estado respondeu com força policial.

Os dois casos contêm o mesmo equívoco: a convocação do Direito Penal para reprimir o que não se quer compartilhar. No primeiro, versos como “eu quero matá-lo” deixaram de ser entendidos como hipérbole artística e passaram a ser tratados como ameaça real. No segundo, um desenho infantil vira suposta violação ideológica ou religiosa. Em ambos, o Estado tratou linguagem, arte e educação como risco penal.

Do ponto de vista jurídico, a fragilidade das suposições e a irracionalidade é evidente. No caso da música, não se sustentam os tipos penais aventados. O delito de incitação ao crime (art. 286 do Código Penal) exige estímulo concreto à prática de infração possível. Não existe crime possível quando o alvo é um personagem inexistente. O crime de ameaça (art. 147) exige sujeito passivo determinado e potencial real de causar temor, requisitos ausentes quando se fala de Papai Noel. Tampouco cabe falar em crime religioso ou discurso de ódio: a letra não ataca fé, culto ou fiéis, mas um símbolo cultural associado ao consumismo.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal afasta esse tipo de delírio punitivo. No julgamento da ADPF 187, o caso da Marcha da Maconha, o Tribunal afirmou que a defesa de ideias controversas não configura crime, se não houver incitação direta e concreta. Na ADI 4451, o caso do humor em tempo eleitoral, o STF deixou claro que sátira, ironia e exagero não admitem leitura literal pelo Direito. A Corte reconheceu que a linguagem artística opera fora dos padrões da comunicação ordinária.

O episódio escolar colide com a mesma ordem constitucional. A intervenção policial em ambiente educacional, motivada por desconforto ideológico ou religioso de um responsável, substitui mediação e diálogo por coerção. O Estado passa a tratar a escola como espaço de suspeição, não como local de formação plural, de formação humanística.

O STF já enfrentou esse tipo de conflito ao julgar a ADI 5537, que declarou inconstitucional a lei alagoana da “Escola sem Partido”. Na ocasião, a Corte afirmou que a escola não é espaço de neutralidade moral, nem pode ser submetida à censura ideológica de pais ou do Estado. Reconheceu a liberdade pedagógica como núcleo da liberdade de expressão.

Também o fez na ADPF 548, proposta após operações policiais em universidades durante o período eleitoral de 2018. Nesse caso, agentes públicos apreenderam faixas, interromperam aulas e tentaram coibir debates políticos sob o pretexto de preservar neutralidade eleitoral. O STF proibiu esse tipo de atuação. Afirmou que a presença policial para constranger manifestações intelectuais e acadêmicas violava a liberdade de expressão, a autonomia universitária e o pluralismo de ideias. A Corte deixou claro que o Estado não pode usar a força para silenciar discursos críticos em ambientes educacionais, mesmo quando esses discursos causam desconforto.

Quando se analisam os dois episódios em conjunto, o problema deixa de parecer isolado (até porque existem outros eventos parecidos, que não cabem neste texto). Surge um padrão de expansão irracional do sistema penal, acionado para resolver incômodos simbólicos, morais ou culturais. O inquérito assume função de intimidação, não de tutela jurídica.

Ao investigar uma música punk de quatro décadas atrás que afirma “aqui não existe Natal” e ao enviar policiais armados a uma escola infantil por causa de um desenho, o Estado não amplia segurança nem protege direitos. Ele banaliza o Direito Penal e revela incapacidade de distinguir metáfora de ameaça, educação de crime e dissenso de perigo real.

Mas não só isso: em ambos os casos a iniciativa não foi dos policiais, mas de indivíduos que os chamaram. Isso diz muito sobre o adoecimento da sociedade brasileira causado pelo vírus da intolerância. É também triste constatar que racismo religioso e falta de senso de humor têm prestígio diante dos agentes da lei.