ARACAJU/SE, 27 de abril de 2024 , 4:17:32

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Papai, trajetória

Empurrado pelas circunstâncias, saiu do bar para uma loja de tecidos. Na sua caderneta, está anotado: Comprei a loja a sr. Portinho no dia 24 de junho de 1945. Da média do café com pão amanteigado, do pedaço de bolo – que mamãe cozinhava -, do copo de refresco ou de cachaça, partiu para o tecido, cáqui, brim ferro, arranca topo, linho, organdi, fustão, sombrinha, guarda-chuva, a tesoura no bolso da camisa, camisa, aliás, que tinha quatro bolsos, o metro à vista. Na salinha, no fundo da loja, onde se sobressaia o cofre que, vendida a loja, levou para casa, a escrivaninha, de velhas datas, e, nela a caderneta, onde fazia suas anotações, de nascimento, de morte, de casamento e de acontecimentos esparsos, iniciando outra, que não chegou a gastar todas as folhas, na qual registrei seu óbito. As cadernetas ficaram comigo. Delas me utilizei em datas em livro recentemente lançado, registrando sua existência no meio da bibliografia.

Esta, a grande façanha, porque, mesmo sem ter o primário completo, escrevendo como falava, o espírito do pesquisador aflorava em anotações de óbitos, na imensa maioria, a letra tremida exibida durante todo o ano de 1988, prosseguindo no ano seguinte, culminando com o último registro: Faliceu Fernando filho de D. Tereza em 23 de outubro 1989. Por uma dessas infelizes coincidências, Fernando era seu companheiro de hemodiálise, levando com sua morte a de papai, dentro do prognóstico que silenciosamente corria, para os pacientes não ouvirem, que o falecimento de um arrastava o de outro. Treze dias depois, era a vez de papai, morrendo sentado, como um soldado prussiano, seguindo à risca, embora sem saber, uma das últimas frases de Tobias Barreto, um século antes, no leito de morte, no Recife.

Atrás ficou a loja, ponto de encontro para um cafezinho, que nunca foi servido. O balcão, único no comércio local, servia de cadeira para todos, amigos seus e nossos, onde pessedistas e udenistas marcavam presença. O fantasma do bar lhe perseguia. Quando, aposentado, vendeu a loja,  centralizando-se em produzir batida de limão para consumo próprio. Um neto flagrou-lhe no quintal, com um copo de Dreher na mão. Foto espetacular, sem camisa, no seu reino de galinhas de pescoço pelado, tempo em que a insuficiência renal não constava do seu roteiro de vida. Depois, como no poema de Manoel Bandeira, veio o mau destino e fez dele o que quis.

Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras