As pessoas se interessam pela história do direito para entender como os parâmetros jurídicos eram antes e como se transformaram no que são hoje. Quem sabe o caminho que fez, pode melhorá-lo. Quem lembra os perigos dele, saberá evitá-los.
Já quem estuda direito comparado o faz para aprender soluções com sistemas estrangeiros. Ou para atender demandas de globalização, dado que o direito nacional tem de ter interlocução com as esferas transnacionais (comunitária, planetária etc.) e com o de outros países. Também para melhor entender o direito internacional, já que as regras dele levam em consideração as peculiaridades nacionais na sua formação. Ou, finalmente, por mero enriquecimento cultural.
A antropologia jurídica é também um estudo enriquecedor. Ajuda a compreender as práticas, crenças e instituições jurídicas de uma sociedade. Como cada grupo humano vive o seu direito.
Talvez por isso valha a pena fazer uma digressão que combina essas dimensões e um evento da semana passada.
Primeiro a história. A 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, de 1868, foi uma das três “Emendas da Reconstrução”. Ela veio praticamente junto com a 13ª, de 1865, que aboliu a escravidão, e a 15ª, de 1870, que proibiu a negação do voto por razões raciais. Todas foram adotadas após a Guerra da Secessão (1861-1865).
A 14ª Emenda aborda questões de cidadania, direitos civis e igual proteção sob a lei. Ela visa expandir o poder federal e modificar o equilíbrio de poder entre o governo federal e os estados, após o conflito decorrente da divergência entre os estados escravagistas do sul (Confederados) e os do norte (União) sobre a abolição do regime de escravidão.
Aqui entra o direito comparado. Essa Emenda está dividida em seções, algumas delas relevantes no contexto que será comentado. A Seção 5 autoriza o Congresso a fazer valer a emenda por meio de legislação apropriada. A Seção 3 foi projetada para evitar que ex-confederados ocupassem cargos públicos. Ela proíbe qualquer pessoa que tenha se engajado em insurreição ou rebelião contra os Estados Unidos, ou que tenha dado ajuda ou conforto aos inimigos do país, de ocupar um cargo público (“oficial”). No entanto, essa proibição pode ser removida se o Congresso assim decidir, por meio de uma votação de dois terços de ambas as câmaras.
Cerca de seis meses antes da eleição primária do Colorado, agendada para 5 de março de 2024, seis eleitores desse estado, incluindo quatro republicanos, processaram o ex-presidente Donald Trump e a Secretária de Estado do Colorado (autoridade responsável pelo processo eleitoral naquela unidade). Eles alegaram que Trump, por suas ações pós-eleitorais em 2020, incitou o tristemente famoso ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. Por essa razão, não seria elegível para concorrer à presidência com base na Seção 3 da 14ª Emenda.
Uma corte de primeira instância concordou que Trump participou de uma insurreição como definida pela Seção 3. No entanto, negou o pedido ao fundamento de que a presidência não se enquadra no conceito de “oficial” (servidor público), conforme especificado pela emenda.
Julgando um recurso, a Suprema Corte do Colorado, por uma maioria de 4 a 3, reverteu essa decisão. Ela reconheceu que a presidência é um “cargo público federal” sujeito às restrições da Seção 3. Consequentemente, determinou a remoção do nome de Trump das cédulas das primárias presidenciais de 2024 no estado, invalidando quaisquer votos nele. Porém, condicionou os efeitos de sua decisão ao entendimento subsequente da Suprema Corte dos Estados Unidos.
Trump recorreu e o caso rapidamente chegou à Suprema Corte. O tribunal é composto por nove membros, seis dos quais indicados por governos republicanos (o presidente Roberts, e os juízes Thomas, Alito, Gorsuch, Kavanaugh e Barrett) e três indicadas por democratas (Sotomayor, Kagan e Jackson).
No caso “Trump versus Anderson”, julgado em 4 de março passado, a Corte não disse se Trump teria participado ou não dos eventos de 6 de janeiro de 2021. Ela somente discutiu a legitimidade dos estados para aplicar a Seção 3 a cargos e candidatos federais. Concluiu que essa competência não é concedida pela Constituição. Embora os Estados possam regular cargos estaduais, essa autoridade não se estende aos cargos federais, especialmente à Presidência. Enfatizou a ausência de precedentes históricos para a aplicação estadual da Seção 3 em relação a cargos federais. A conclusão foi que a responsabilidade de aplicar a Seção 3 recai sobre o Congresso, e não sobre os Estados, particularmente em relação à Presidência e outros cargos federais.
A decisão de anular o veredito do Colorado foi unânime. Por isso, a Corte optou por não designar relator. Ela foi proferida “per curiam”, ou seja, “pela corte”, como se todos fossem os redatores.
O posicionamento condutor, de apenas 13 páginas, destacou que permitir que cada Estado determinasse a aplicabilidade da Seção 3 separadamente levaria a resultados inconsistentes, prejudicando a integridade das eleições federais. A autoridade que poderia fazer isso seria o Congresso, após lei regulamentadora da matéria.
No entanto, quatro julgadoras apresentaram voto em separado. As três juízas nomeadas por presidentes democratas (Sotomayor, Kagan e Jackson), em seis páginas, assinalaram que a decisão acertava nas conclusões, pois os Estados não poderiam invalidar candidaturas presidenciais com tal fundamento. Mas disseram que a decisão se equivocava ao dar competência apenas ao Congresso para declarar, no âmbito eleitoral, que alguém teria participado de uma insurreição. Além disso, entendiam que a norma constitucional era autoaplicável.
A juíza Barrett, nomeada por próprio Trump, também divergiu na fundamentação, em um voto curtíssimo. Para ela, a Corte poderia se limitar a dizer que os Estados não tinham tal competência e ponto final. Não precisaria indicar o Congresso como autoridade competente. Em acréscimo, divergindo das três colegas, acentuou que, como o país estava em turbulência, não era o momento de amplificar o desacordo ou a estridência, afirmando que era dever do tribunal diminuir a temperatura nacional, não a aumentar.
Agora a antropologia jurídica. O processo judicial mais importante do país foi resolvido em 20 páginas. Nenhum juiz da Suprema Corte deu entrevistas ou expressou opiniões em público sobre o assunto. Os seus votos falaram o que tinham de dizer. O presidente Joe Biden, que será o adversário de Trump, não comentou publicamente a decisão, seja para elogiar, seja para criticar. Nenhum dos demais estados, mesmo os administrados pelos democratas, cogitou confrontar a decisão da Suprema Corte, com a busca de nova decisão em âmbito local, com o mesmo conteúdo. Os juízes de todo o país obedecerão a esse comando, ainda que dele discordem ou guardem ressalvas.
O direito comparado é realmente muito interessante. A antropologia jurídica, também. E a história, essa senhora paciente, dirá se os julgadores acertaram.