ARACAJU/SE, 26 de agosto de 2024 , 5:43:13

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Retrocesso eleitoral

 

Nos anos que antecedem eleições, a legislação eleitoral costuma ser modificada. Em 2023, de modo particular, além das leis de alteração, que já se prenunciam, e das resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, que as regularão, é possível que advenha, também, uma emenda constitucional: a Proposta de Emenda à Constituição 9/23, de autoria do deputado Paulo Magalhães e outros parlamentares.

A proposta é um equívoco. São tantos os enganos que é difícil enumerá-los todos. Enfatize-se o que parece ser o principal: de modo oblíquo, ela reduz a alocação de recursos para candidaturas negras e femininas.

A “PEC da Anistia”, como tem sido chamada a PEC 9/23, agracia os partidos políticos que não cumpriram as cotas mínimas de destinação de recursos em razão de sexo ou raça nas eleições de 2022. Ela impede sanções de qualquer natureza aos que infringiram esses deveres, tais como devolução de valores, multa ou suspensão dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do Fundo Partidário (FP). 

Estima-se que 23 bilhões de reais deixarão de ser devolvidos, caso a emenda venha à tona. Dinheiro público, não aplicado ou gasto ilegalmente, que não será recuperado. Numerário dragado pelo ilícito abonado pelo Legislativo Federal, sob as vistas da opinião pública nacional. 

Mas isso não é o pior. A PEC retarda a evolução política nacional no quesito representatividade. Isso é mais grave.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56% da população do Brasil se declara preta (9%) ou parda (47%). Já as mulheres, segundo o mesmo Instituto, são 51,1% da população brasileira. São segmentos majoritários, politicamente minorizados. No Congresso Nacional há, apenas, 91 deputadas e 15 senadoras. Pretos e pardos são, respectivamente, 27 e 107 deputados. 14 senadores afirmaram-se negros. É pouco. É sub-representação.

Somando princípios e regras dispersos pelo ordenamento, o Tribunal Superior Eleitoral houve por bem disciplinar o tema de modo a confrontar essa abdução de representatividade. Embora seja questionável que possa fazer isso (dado que esse dever primário é do Legislativo), o Supremo Tribunal Federal sempre validou essa atuação normatizadora do órgão de cúpula da Justiça Eleitoral.

A lei já havia assegurado que, pelo menos, 30% das candidaturas seriam femininas. Respaldado pelo STF, o TSE disse que, para as candidaturas femininas, o percentual de recursos a serem investidos em favor delas corresponderia à respectiva proporção em relação ao total de candidaturas da agremiação. Protegeu-se para elas, por conseguinte, pelo menos 30% dos fundos públicos repassados às associações partidárias. Trata-se de uma garantia de que, apesar de serem minorias nos partidos, as mulheres terão respeitados padrões mínimos de repartição de meios financeiros para a campanha. 

Outra regra diz que para as candidaturas de pessoas negras o percentual de recursos – públicos, insista-se – corresponderá à proporção de: a) mulheres negras e não negras do gênero feminino do partido; e b) homens negros e não negros do gênero masculino do partido. O intento é afiançar que não haverá discriminação racial dentro dos partidos.

Esses comandos constam da Resolução 23.605, de 2019, com alterações feitas em 2021, pela Resolução 23.664. Eram, portanto, plenamente aplicáveis no pleito de 2022.

Ocorre que, em 5 de abril de 2022 foi promulgada a Emenda Constitucional 117 (EC 117), que estabeleceu algo semelhante. 

Segundo essa PEC, o montante do FEFC e da parcela do FP destinada a campanhas eleitorais, bem como o tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão a ser distribuído pelos partidos às respectivas candidatas, deverão ser de no mínimo 30%, proporcional ao número de candidatas. A distribuição deverá ser realizada conforme critérios definidos pelos respectivos órgãos de direção e pelas normas estatutárias, considerados a autonomia e o interesse partidário.

Sendo essa regra constitucional de 2022, não poderia valer para o pleito do mesmo ano, segundo tranquila orientação constitucional. Isso quer dizer que valeriam as do TSE, sem ressalvas.

Mas não é o que parecem pensar os parlamentares. A “PEC da Anistia” quer transformar a previsão anterior do TSE em regra vazia. Quer exigir respeito às regras de investimento em candidaturas femininas e negras apenas a partir da EC 117. Ou seja, é excluída da eleição de 2022 qualquer possibilidade de punição. Castigos, só a partir de 2024.

Com a “PEC da Anistia”, caso aprovada como hoje consta do substitutivo do Deputado Antônio Carlos Rodrigues, todo o esforço feito por quem quis cumprir as regras em 2022 se perde. Quem não obedeceu às determinações do TSE, quem não prestou contas adequadamente, está desculpado, liberado, remitido, enfim.

É uma visível involução, produzida por uma classe política ensimesmada, autorreferente. Como os atuais modelos são exigentes, ao invés de implementá-los, prefere-se mudá-los, enfraquecendo o avanço pretendido pela legislação e pelo entendimento precedente dos tribunais. Quem gastou mal, quem agiu na contramão das regras vigentes e cogentes é premiado. Só falta o aplauso ao desobediente, ao indisciplinado, ao transgressor.

Como tíbia compensação, a PEC também prevê que haverá uma reserva de 20% das vagas nos parlamentos dos três níveis federativos para as mulheres. Isso é aparentemente positivo. Apenas aparentemente. É bom que haja uma reserva de cadeiras, mas a pergunta a ser feita é: por que tão pouco? Se são mais da metade da população, por qual razão apenas 1/5 das vagas serão resguardadas para elas? 

Para que se tenha a medida do atraso brasileiro, no último 21 de setembro, o parlamento da Índia aprovou uma lei que reservou 1/3 dos assentos da Lok Sabha – o equivalente à nossa Câmara dos Deputados – para mulheres. A diferença é gritante. De passagem, diga-se que por lá, também há 1/3 das cadeiras privativas para comunidades marginalizadas. Outro grande diferencial em relação ao nosso sistema.

Note-se, por fim, que, segundo uma tímida regra de transição prevista na “PEC da Anistia”, na primeira eleição de vigência da emenda – a do ano que vem – a reserva seria de apenas 15% das vagas legislativas municipais. Pouco demais. Para que se conceba a dimensão da deficiência, em 2020, 9.196 vereadoras foram eleitas (16%), contra 48.265 vereadores (84%). Quer dizer: já se tem hoje, na média, mais do que a reserva pretendida para 2024. Falta ousadia cívica à proposta. Ressente-se ela de audácia histórica.

Há mais enganos no texto em discussão no Congresso. Esses, porém, bastam para demonstrar o caminho que o Brasil insiste em percorrer no sentido da mora na reparação do déficit de representatividade e no desleixo na adoção de ações afirmativas consistentes.