ARACAJU/SE, 14 de agosto de 2025 , 14:57:37

Thoth, Tamus, Robbie e Skynet

 

A inteligência artificial é a mais recente de uma série de revoluções tecnológicas que desafiam e redefinem a humanidade. Sua natureza disruptiva provoca tanto otimismo como medo. 

Por um lado, supõe-se que a conjugação dela com a inteligência natural produzirá uma melhora das condições existenciais, pela identificação de curas de doenças, amplificação da produtividade, organização do sistema político e de justiça de modo isonômico e racional, entre outras utopias. 

Mas há quem veja o contrário: seres humanos tornados inúteis, risco de fome e desemprego generalizados, perda do comando humano dos destinos do mundo, já que as máquinas poderiam usurpá-lo, atrofia das capacidades intelectuais. Distopias são abundantes, também.

Entre apocalípticos e integrados, como diria Umberto Eco, entre a “Skynet” (a inteligência artificial que caça humanos em “O Exterminador do Futuro”) e “Robbie” (o robô bonzinho do conto homônimo de “Eu, Robô”, de Isaac Asimov), impõe-se a reflexão e o amadurecimento quanto desenvolvimento e implementação da IA. 

Esse é, portanto, um campo propício para a filosofia dar a sua contribuição (e, em seguida, para o direito impor sua disciplina).

Um ponto de referência desse debate vem da Grécia antiga. O “Fedro”, diálogo composto por Platão provavelmente entre 370 e 360 a.C., apresenta uma complexa conversa entre Sócrates e o jovem Fedro às margens do rio Ilisso, fora dos muros de Atenas. 

Fedro lê um discurso do orador Lísias sobre o amor, a partir do qual se desenvolvem reflexões sobre a respectiva natureza, a loucura divina, a alma e a verdadeira arte da retórica. São muitos os temas e as reviravoltas nessa conversa. O leitor é chamado para muitos assuntos paralelos e outros tantos sobrepostos.

Mas, quase ao fim desse diálogo, após discutirem a persuasão e o conhecimento, os interlocutores se voltam para o exame do valor da escrita, numa transição que liga a técnica oratória à maneira como o saber é transmitido e conservado.

O ponto central é a narração, por Sócrates, do mito de Thoth e Tamus. Thoth, deus egípcio da escrita, apresenta sua criação ao faraó Tamus, com a afirmação de que ela seria um grande benefício para a memória e a sabedoria. Tamus discorda e afirma que a escrita, na verdade, produzirá o esquecimento, porque as pessoas deixarão de exercitar a memória e passarão a depender de sinais externos. Além disso, a escrita cria apenas aparência de sabedoria: quem lê pode parecer saber, mas na verdade não compreendeu profundamente, pois o texto não garante exame nem interação.

A partir dessa narrativa, Sócrates desenvolve algumas ideias centrais. A fala viva supera a escrita, pois o discurso oral permite adaptação ao ouvinte, perguntas e respostas, adequação ao momento e ao contexto. Por outro lado, a escrita é fixa, não se defende de interpretações erradas e responde sempre da mesma forma. 

A escrita é comparada a um “jardim de palavras”, em que os textos são como “sementes” plantadas num horto ornamental: embelezam e podem inspirar, mas não geram conhecimento vivo por si só. 

Segundo Sócrates, o verdadeiro conhecimento nasce quando as palavras são “plantadas” na alma, por meio do diálogo, e cultivadas com questionamentos. 

O valor da escrita, assim, tem limitações. Sócrates não a condena totalmente, pois reconhece sua utilidade para preservar e lembrar ideias, como registro para quem já as compreende. Mas ele insiste que o conhecimento real exige interação dialógica, na qual a alma é conduzida à verdade.

Esse trecho é ambivalente. De um lado, apresenta-se como crítica à dependência da escrita como substituto da memória e do pensamento vivo. De outro, é irônico, pois o próprio Platão usa a escrita para produzir essa discussão.

Essa crítica platônica, aparentemente tão antiga, reverbera ainda hoje. Em atualização desse debate para o século XXI, o filósofo Pedro Dotto publicou um interessante artigo no jornal “O Estado de S. Paulo”, em 2 de agosto de 2025: “O que Platão pode nos ensinar sobre IA?”. O artigo compara a crítica platônica à escrita, constante do “Fedro”, com os riscos e desafios da inteligência artificial generativa. 

Ele começa por observar que, assim como Platão analisou a transição da oralidade para a escrita, isto é, uma revolução tecnológica com implicações culturais, sociais e cognitivas, hoje há a ascensão acelerada da IA generativa, capaz de produzir textos, imagens, planilhas e vídeos, influenciar decisões e moldar processos.

Dotto usa a alusão platônica ao mito de Thoth e Tamus para destacar fragilidades da escrita que se aplicam, de forma ampliada, à IA: risco de atrofia da memória (ou de habilidades cognitivas mais amplas) pela dependência excessiva de registros externos; criação de “sábios de aparência”, com erudição superficial e sem compreensão genuína; e a ilusão de assistência, que pode levar à terceirização irrefletida de decisões complexas. Menciona pesquisas, como do MIT Media Lab, que indicam possível enfraquecimento do pensamento pelo uso constante de sistemas como o ChatGPT.

Ele enfatiza que a IA generativa, embora interativa e capaz de responder dinamicamente, é caracterizada como um “papagaio estocástico”: rearranja padrões linguísticos aprendidos de grandes bases de dados, opera por compressão informacional, sem compreensão real. É mera repetição organizada. O ensaio enfatiza que, assim como Platão, pela figura de Sócrates, via a escrita como um “pharmakon” (remédio e veneno), a IA também requer cautela: não deve substituir o pensamento vivo nem o exercício dialético, mas ser usada com curiosidade e consciência de suas limitações, preservando a distinção entre técnica e sabedoria.

Parece óbvio, mas é sofisticado. As palavras de Platão e Dotto conduzem a uma enorme quantidade de perguntas. 

Se a escrita que Platão criticou foi o meio que imortalizou seu pensamento e permitiu o florescimento da filosofia ocidental, o que isso pode ensinar sobre os receios atuais em relação à IA? Não seria um erro subestimar o potencial positivamente transformador de uma tecnologia?

O ábaco e a calculadora não destruíram a capacidade matemática humana, apenas a reconfiguraram. A bússola, o astrolábio e o GPS não eliminaram o senso de direção dos humanos, mas o transformaram. Talvez não seja necessário assumir que a IA necessariamente atrofiará o potencial cognitivo humano. Quiçá a IA simplesmente reorganize aptidões, ainda que de formas hoje imprevisíveis.

É verdade que a IA pode apresentar desafios qualitativamente diferentes das tecnologias anteriores, pois sua capacidade de simular aspectos da cognição humana faz dela única.

Naturalmente, reorganizar as competências humanas para discernir o que é bom ou mal, útil ou prejudicial, e, a partir daí, regular adequadamente a IA, dependerá de conceitos como curiosidade, consciência e sabedoria, citados por Dotto. 

Essas noções, cujas definições podem ostentar algumas imprecisões, mas são intuitivamente discerníveis, a máquina ainda não possui e só o humano detém (até o momento). E por detê-las, a humanidade ainda poderá conter, mediante vigilância ética e regulação jurídica as inteligências artificiais para que sejam como “Robbies” e não “Skynets”. 

A questão é saber se a velocidade vertiginosa do desenvolvimento tecnológico é compatível com a capacidade humana de regular a inovação, ainda bastante lenta. 

Desta vez, Toth não vai procurar Tamus. Tamus é quem tem de tomar a iniciativa.