No ano de sua restauração democrática e no qual completou trinta e cinco anos, foram promulgadas – até o momento – três emendas à constituição: emenda 129, de 5/7/2023, que acrescenta o art. 123 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar prazo de vigência adicional aos instrumentos de permissão lotérica; emenda 130, de 3/10/2023, que altera o art. 93 da Constituição Federal para permitir a permuta entre juízes de direito vinculados a diferentes tribunais; e emenda 131, também de 3/10/2023, que altera o art. 12 da Constituição Federal para suprimir a perda da nacionalidade brasileira em razão da mera aquisição de outra nacionalidade, incluir a exceção para situações de apatridia e acrescentar a possibilidade de a pessoa requerer a perda da própria nacionalidade.
Somadas às quatorzes emendas promulgadas no recordista ano de 2022, a Constituição de 1988 atinge o patamar de 131 emendas aprovadas ao longo de 35 anos [uma média de 3,75 emendas por ano (!)], fora as seis “emendas constitucionais de revisão” aprovadas durante a revisão constitucional realizada entre o segundo semestre de 1993 e o primeiro semestre de 1994.
Cada uma de todas as 131 emendas, por si só, justificam análise específica e detalhada, muito embora existam aquelas que se destacam, pois efetuaram inúmeras transformações estruturais nos regramentos constitucionais sobre matérias da maior relevância político-institucional e envolvendo direitos fundamentais.
Todavia, o nosso ponto, aqui, é a reflexão sobre a rigidez e a mínima estabilidade que os textos constitucionais precisam possuir, e a discussão sobre se, nesse cenário de alta volubilidade política, a Constituição de 1988 ainda se pode considerar uma constituição rígida.
Com efeito, se Constituição rígida é aquela que impõe mecanismos e procedimentos mais solenes e dificultados para sua reforma, a exemplo de iniciativa restrita, quóruns qualificados de aprovação, dois turnos de votação, impossibilidade de reapreciação de matéria rejeitada na mesma sessão legislativa, além de um núcleo material intangível ao poder de reforma (as “cláusulas pétreas”), a Constituição de 1988 possui tudo isso e mesmo assim atinge esse patamar impressionante de mudanças em seu conteúdo normativo.
E se é verdade que boa parte dessas emendas é explicada pela necessidade de alterar conteúdos constantes da Constituição que bem poderiam estar regrados em nível infraconstitucional, por outro lado é também verdadeira a importância, dado o princípio constitucional da vedação do retrocesso social, que conquistas materiais em se tratando de direitos fundamentais e imposição de políticas públicas de atendimento aos interesses sociais e econômicos sejam formalizadas em nível hierárquico constitucional.
Nessa toada, a explicação para o fenômeno se daria no campo da política: os mecanismos da rigidez e da mínima estabilidade constitucional estariam presentes, cabendo à população em sua diversidade formar (pelo voto) composições congressuais que não conduzissem a situações como a de maiorias parlamentares tão amplas e estáveis, capazes de impor alterações constitucionais sem precisar se dispor a quaisquer negociações políticas mais sérias e programáticas. Ainda assim, no campo da política, teríamos de enfrentar os problemas decorrentes do modelo de “presidencialismo de coalizão” e o fisiologismo explícito da atuação parlamentar, de que é maior evidência o denominado “centrão”.
De todo modo, ainda que formalmente os mecanismos e procedimentos da rigidez constitucional estejam presentes na Constituição, há uma lacuna política que urge preencher. É inadmissível que a Constituição dita Cidadã se permita reformas estruturais de alta envergadura em seu conteúdo e materialidade sem que sejam submetidas a aprovação popular direta.
Já em 2005, a Ordem dos Advogados do Brasil, com apoio de diversas outras entidades sociais representativas e condução intelectual de Fábio Konder Comparato, apresentou ao Congresso Nacional uma proposta de reforma política com o objetivo de potencializar os mecanismos de democracia participativa preconizados na Constituição, com os seguintes itens prioritários: criar a iniciativa popular de plebiscitos e referendos, permitir ao povo decidir por plebiscito sobre a realização das políticas econômicas e sociais previstas na Constituição, bem como sobre a concessão de serviços públicos e a alienação do controle de empresas estatais, tornar dependente de decisão popular a alienação de bens pertencentes ao patrimônio nacional, estender o referendo a emendas constitucionais e a acordos ou tratados internacionais, tornar obrigatório o referendo de quaisquer leis em matéria eleitoral, estabelecer preferência na tramitação de projetos de lei de iniciativa popular e impedir a alteração ou a revogação de leis de iniciativa popular sem a concordância do povo.
Cada vez mais o tempo deu razão a essa proposta. Diversas dessas emendas constitucionais foram aprovadas ao largo de maior discussão popular, e muitas delas trataram de enormes transformações no nosso pacto social com impacto direto e imediato em todo o tecido social e mesmo no regramento instrumental indispensável para viabilizar o efetivo atendimento dos objetivos constitucionais da República fixados no art. 3º (construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação).
Já passou da hora de rever esse ponto, que precisa com a máxima urgência ser relançado ao debate público e assumido como compromisso de atuação política e de governo, a ser sufragado em eleições.