Nascido em Lagarto, Sergipe, Sílvio Romero (1851-1914) foi um dos principais pensadores brasileiros. Atuou como advogado, filósofo, sociólogo, crítico literário, professor, juiz e político. Muitos o consideram o primeiro teórico generalizante do Brasil, o desbravador de uma linhagem de reflexões que inclui nomes como Manoel Querino, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Caio Prado Jr., Darcy Ribeiro, Roberto Da Matta, Florestan Fernandes, Alberto Guerreiro Ramos, Milton Santos, Octávio Ianni, Celso Furtado e Lélia Gonzales.
Um aspecto de seu pensamento merece análise mais detalhada. Embora sua defesa da abolição da escravidão o torne uma figura progressista para seu tempo, o caminho gradualista que defendeu revela uma postura controversa. Romero via como necessária e desejável a liberdade dos escravizados, mas acreditava que a transição deveria ser orientada pelo progresso natural da sociedade e pela adaptação econômica, não por uma imposição legislativa abrupta.
Vale contextualizar. No cenário jurídico, a Constituição de 1824, outorgada após a Independência, tolerava a escravidão, base da ordem social e econômica. Qualquer mudança nesse sistema encontrava resistência entre os proprietários de escravizados. Esse conservadorismo reforçava-se pela lembrança da Revolução do Haiti (1791-1804), na qual os escravizados se rebelaram e conquistaram a independência do país. Esse evento, que influenciou independências e constituições mundo afora, inspirou temor em vários setores privilegiados do Brasil, que temiam que a libertação dos escravos resultasse em violência e instabilidade.
De par com esse contexto, a formação de Romero foi marcada pela efervescência intelectual do século XIX, um período em que as ciências transformavam o entendimento sobre o mundo e a sociedade. Na física, Michael Faraday e James Clerk Maxwell revolucionaram a compreensão do eletromagnetismo. Na química, Dmitri Mendeleev organizou os elementos na Tabela Periódica, impulsionando descobertas. Charles Darwin desafiou paradigmas religiosos e culturais com a teoria da evolução, exposta em “A Origem das Espécies” (1859), que introduziu o conceito de seleção natural. Esse pensamento entusiasmou outras áreas, inclusive a sociologia, por meio do “darwinismo social”, que aplicava a ideia de “sobrevivência do mais apto” às sociedades humanas e servia como justificativa para desigualdades raciais e sociais.
A Segunda Revolução Industrial trouxe avanços significativos com a produção de aço em larga escala pelo processo Bessemer (1856), a disseminação do uso do petróleo, a partir de 1870, e da eletricidade, com a invenção da lâmpada por Thomas Edison (1879), além do desenvolvimento do motor à combustão interna de Nikolaus Otto (1876), que pavimentou o caminho para a criação de automóveis e aviões. Essas novidades transformaram a economia e a urbanização e fortaleceram a visão de progresso científico e social, quando Romero formou suas ideias, confiando na ciência e em um progresso gradual para mudar a sociedade.
Foi nessa época que Romero se formou na Faculdade de Direito do Recife, em 1873. Lá teve contato com a “Escola do Recife”, liderada por Tobias Barreto e da qual viria a ser o segundo nome mais relevante. Esse movimento não era homogêneo, mas promovia a modernização do pensamento brasileiro e rejeitava o tradicionalismo. Nele, teve contato com o idealismo de Hegel e Schopenhauer, o positivismo de Auguste Comte e o evolucionismo de Herbert Spencer e Ernst Haeckel. Romero absorveu e reconstruiu essas ideias, defendendo uma visão científica para a organização social, o que contribuiu para a sua abordagem gradualista para a abolição da escravatura. Ele acreditava que o trabalho escravo deveria ser progressivamente substituído pelo livre, uma posição que, embora pragmática, acabava procrastinando a liberdade dos escravizados.
A extinção da escravatura no Brasil foi de fato um processo gradual, com leis que limitaram a prática antes de culminar na abolição completa, em 1888. A Lei Eusébio de Queirós (1850) proibiu o tráfico de escravizados, e a Lei do Ventre Livre (1871) declarou livres os filhos de escravizadas. Em 1885, a Lei dos Sexagenários concedeu liberdade aos cativos com mais de 60 anos.
Como lembra Evaristo de Moraes em “A Campanha Abolicionista”, no início de 1881, Sílvio Romero escreveu para a Revista Brasileira o artigo “A Questão do Dia – a emancipação dos escravos”. Nele, ao estudar as diferentes maneiras de resolver o problema, condenava a proposta dos abolicionistas radicais e menosprezava a atuação parlamentar de Joaquim Nabuco, estimado por esses propagandistas. Romero elaborou aí uma solução privada, individualista, para o problema, sem intervenção direta do Estado.
Nas palavras do sergipano: “O melhor meio de acabar com a escravidão não é formular projetos absurdos e combinações legislativas engenhosas. O melhor meio de extingui-la é restringi-la, colocá-la em estado de sítio, estabelecer com ela a concorrência, torná-la inútil, e depois, prejudicial e impossível. É fazer crescer ao seu lado o trabalho livre, mais fecundo e, depois, mais fácil, mais barato; é, em uma palavra, matá-la economicamente.”
Entendia Romero que o governo não decretaria a libertação dos escravos, nem lhe caberia fazê-lo. Ele apresentava uma evidência para a descrença do papel estatal nesse processo: a Lei do Ventre Livre havia avançado pouco, enquanto a “generosidade nacional se desenvolvia cada vez mais, aumentando, dia após dia, o número de libertos”. Concluía: “Nós mesmos aprenderemos a andar, sem que o poder nos ensine”. Ele acreditava que “o governo é apenas uma força de controle, nada mais; não pode ser herói, nem pode ser libertador”.
A desconfiança não era gratuita: desde o Tratado de 1815, entre Inglaterra e Portugal, que proibia o tráfico de escravizados ao norte do Equador, e os de 1826 e 1841, entre Brasil e Inglaterra, que previam o fim desse comércio, as leis que reconheceram liberdades aos africanos sequestrados e servilizados eram flagrantemente descumpridas, com o aval de autoridades, inclusive judiciárias. As fraudes cartoriais e em inventários que transferiam indevidamente a propriedade humana eram óbvias, mas chanceladas oficialmente.
Por esse pensamento, Romero chegou a ser chamado de “escravocrata”, reagindo no debate público com ataques a Nabuco, a quem tratava de “pedantocrata”. No entanto, para além dessas rusgas, Romero reconhecia a importância do movimento e de figuras como Nabuco, José do Patrocínio e Luiz Gama. Consumada a abolição, escreveu dando o mérito de cada um deles e de outros mais. Sobre Gama, declarou: “Orador, jornalista e poeta, era um quase negro que não se envergonhava de sua origem; pelo contrário, foi seu defensor incansável. Tendo sido escravo, tornou-se o abolicionista brasileiro mais antigo, mais apaixonado, mais entusiasta e mais sincero”.
Romero admirava esses abolicionistas pelo idealismo e pela paixão, mas considerava suas visões “românticas”. Ele via o abolicionismo como um programa benigno e declarou: “Libertemos os negros; porque devemos considerá-los como os desafortunados que nos ajudaram a alcançar fortuna… e que hoje nos oferecem a oportunidade de praticar um ato nobre: a libertação dos escravos.”
Ele foi pioneiro em ver o Brasil como uma nação mestiça, que deveria absorver e integrar seus elementos formadores, um escândalo para o seu tempo. Apesar disso, via o negro como “inferior na escala etnográfica” e argumentava que a sociedade brasileira precisava evitar a “africanização”.
A crença de que o progresso social deveria ser guiado pela ciência e pela ordem econômica fez com que Romero negligenciasse a urgência dos direitos humanos dos escravizados como imperativo moral. Ele condicionava a libertação a um gradualismo que, sob os padrões de hoje, soa como racismo. Suas declarações, como “o negro nunca chegou a civilizar-se”, exemplificam uma visão de inferioridade racial, ancorada no evolucionismo de Spencer, que sustentava seu pragmatismo.
Romero era complexo. Foi vanguardista ao reconhecer a contribuição dos negros para a formação do Brasil. Destacou que “na literatura brasileira, a raça negra, apesar de ter contribuído com um grande número de habitantes deste país… nunca foi assunto predileto dos nossos poetas, romancistas e dramaturgos”. Ele via essa omissão como um erro, e sua obra refletia uma tentativa de trazer à tona o valor cultural dos negros. No entanto, suas opiniões sugeriam uma concepção de superioridade europeia que, na prática, limitava o valor da contribuição negra a um papel subordinado.
A história de Romero é uma lição sobre os perigos de não enfrentar desigualdades e prorrogar mudanças com base em teorias científicas que reforçam preconceitos sociais. Sua defesa de uma abolição progressiva revela os riscos de uma (pseudo)ciência comprometida com o status quo e ilustra a dificuldade de romper com hierarquias raciais consolidadas. Ao afirmar que “é indispensável restituir aos negros o que lhes tiramos: o lugar que lhes compete em tudo que tem sido praticado no Brasil”, Romero reconhece a dívida histórica do Brasil com a população negra, mas permanece preso ao gradualismo que permeou seu pensamento.
Em comparação com os debates contemporâneos sobre justiça para setores minorizados, as ideias de Romero ecoam nas discussões sobre a implementação de políticas afirmativas, como as cotas raciais e de gênero. Assim como o gradualismo de Romero postergava a liberdade em nome da “ordem social”, muitos hoje rejeitam a aplicação de ações afirmativas. A posição de Romero serve de memória para o problema de se preterir a justiça em nome de uma estabilidade ilusória, mostrando que a busca de igualdade de direitos deve ser prioritária. Mas também lembra que a integração, por ele desejada, ainda está bem longe de ser consumada.