ARACAJU/SE, 27 de abril de 2024 , 4:55:28

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Uma velha história de amor

Foi a primeira vez que o vi na loja. Conversou com papai e, na saída, me viu no outro canto do balcão, se aproximando para fazer uma confissão: Eu fui casado com uma tia sua. Dos olhos desceram lágrimas. A esta altura era viúvo pela segunda vez. A morta, minha tia-avó, Dalva, ocorreu em 30 de dezembro de 1921. Vivíamos, no momento da confissão, o início dos anos sessenta. Quarenta anos depois, o viúvo ainda chorava a morte da esposa, no segundo parto, febre puerperal, que a dominou depois de dois dias de terem sido empregados os parcos esforços da época. Mamãe ouviu terem colocado uma bacia com água debaixo da cama, a água fervendo, a febre sem ser dominada, o óbito na madrugada a deixar marcas.

No viúvo, quatro meses de reclusão em casa. Quando se animava a sair, via a capela do Cemitério, onde ela estava sepultada. A crise de choro voltava. Só casou quatro anos depois, a falecida viva em seu coração, atrapalhando. No irmão, Ademar, tabético, que pediu para ver a morta, levada em sua cadeira de rodas, o silêncio ante o corpo da irmã na cama. Retornou. No primeiro piso do sobrado, onde morava, pediu a presença dos copistas, que lá foram, pautas e canetas na mão, Ademar ditando parte de instrumento por instrumento, sem parar, sem assobiar – foi Antonio Melo, um dos copistas, que me revelou -, até que, todas as pautas prontas, sentenciou: – Reúna a banda para treinar. A música, uma marcha fúnebre, Saudades de Dalva, acompanhou o trajeto até o cemitério. O tio da morta, coronel Sebrão, indagado se queria que os festejos natalinos, na Rua do Sol, fossem suspensos, respondeu apenas: a dor é da família; a festa é do povo.

Um primo da morta, com desequilíbrio mental, cortava o cabelo quando o sino da Igreja anunciou a ocorrência do óbito. Perguntou quem era o defunto. Com a resposta, somente um comentário: e o cabelo dela, o que vão fazer? Em meus arquivos o retrato dele, com dedicatória amorosa à falecida, amor frustrado, que ficou na confissão ali estampada. A defunta, restaram homenagens na família. Uma sobrinha e uma prima agraciadas com o nome. Nenhuma das duas alcançou o que se chama de felicidade. Já morreram.

Dalva ficou pela morte prematura, pela marcha fúnebre, pelo amor que o viúvo carregou a vida inteira, pela aureola que o óbito criou, heroína da história de amor mais bonita da família. Pena que o final fosse trágico. Um detalhe que choca: o sítio, no qual morava, nos arrabaldes da cidade, tinha o nome de Eterna Primavera. Talvez a morte não tivesse conhecimento, levando Dalva para mostrar que nada por aqui é eterno.

Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras