ARACAJU/SE, 9 de outubro de 2024 , 18:40:05

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Grupos vendem imóveis, renegociam dívidas e acionistas tiram dinheiro do bolso para enfrentar a crise

Após três anos de pandemia, o setor de saúde passa por uma deterioração. Grandes grupos que fizeram aquisições milionárias em 2020 estão vendendo imóveis, renegociando dívidas e seus acionistas controladores tirando dinheiro do bolso para reduzir a alavancagem do negócio. Outras companhias, cujas ações estão no pior patamar, tornaram-se alvos de aquisição e empresas de menor porte optaram por deixar o setor. Na outra ponta da cadeia, usuários de convênio médico estão cada vez mais insatisfeitos diante dos frequentes descredenciamentos da rede prestadora e do aumento da burocracia para conseguir um atendimento. O índice de reclamações contra as operadoras dobrou entre 2019 e 2023.

Nas últimas semanas, uma série de empresas anunciou medidas diante do atual cenário. A Hapvida, cujo papel despencou quase 80% em apenas um ano, vendeu dez imóveis por R$ 1,25 bilhão. A compradora foi a família Pinheiro, controladora da operadora que também vai colocar R$ 360 milhões num “follow-on” (oferta subsequente de ações) com meta de captar entre R$ 860 milhões e R$ 1 bilhão.

A Dasa, que busca capital novo para reduzir seu endividamento, segue um caminho semelhante. A companhia está negociando a venda dos prédios de dois hospitais que podem gerar entre R$ 400 milhões e R$ 600 milhões. Além disso, também está em curso uma oferta de ações em que a família Bueno, sua maior acionista, injetará R$ 1 bilhão e o BTG Pactual, outros R$ 500 milhões.

Segundo fontes, Oncoclínicas e a Kora têm sido alvos de aquisição. No caso da rede de clínicas para tratamento de câncer, o Goldman Sachs pretende vender sua parte no negócio – o banco entrou na Oncoclínicas há mais de cinco anos e é seu maior acionista. Já a Kora, grupo hospitalar controlado pelo HIG e que está com alta alavancagem, tem conversadocom vários investidores, inclusive fundos de reestruturação financeira. Ambas as companhias informaram que não comentam rumores de mercado.

Entre aquelas de menor porte, a seguradora centenária Allianz saiu do mercado de saúde, na última sexta-feira. A empresa detinha apenas 35 mil usuários de planos empresariais, cujos contratos não serão renovados. A decisão vem após resultados negativos. Em 2022, a seguradora apurou receita de R$ 407,5 milhões e despesas médicas de R$ 410,5 milhões. “No setor de saúde, a escala é fundamental para promover o nível de serviços que a companhia prima por oferecer”, diz comunicado da Allianz.

Outro caso é o da startup Qsaúde, fundada em 2020 pelo empresário José Seripieri, conhecido como Junior. Ele vendeu sua carteira de planos de saúde à concorrente Alice. As duas juntas passam a ter cerca de 30 mil usuários e receita na casa de R$ 150 milhões, no acumulado dos nove meses de 2022.

“Além de ‘follow-on’, as empresas estão buscando outras alternativas para se monetizar de forma rápida como trocar os ativos líquidos que hoje estão retidos como ativos garantidores na ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar]. Esses ativos podem ser títulos, patrimônio imobiliário etc. É um caminho para fazer caixa com o que já se tem”, diz José Senedesi, advogado especializado na área de saúde do escrtório Madrona Advogados.

A dificuldade no setor é generalizada – vai de operadoras, hospitais e laboratórios – mesmo com um aumento de 3,3 milhões de pessoas com convênio médico, desde a deflagração da pandemia.

No período de janeiro a setembro, as operadoras amargaram um prejuízo líquido de quase R$ 3 bilhões. Considerando o resultado operacional (sem os ganhos financeiros), o prejuízo chega a R$ 9,8 bilhões. Esse desempenho é devido a uma combinação de fatores: venda de novos planos concentrada em tíquetes menores; maior uso do convênio devido ao represamento de procedimentos não realizados durante a pandemia, sequelas da covid-19, liberação de terapias, entre outros. Tudo isso tem elevado os custos médicos e as operadoras estão com dificuldades para reajustar o preço da mensalidade do plano de saúde na mesma proporção – a inflação médica é três vezes superior à inflação geral (IPCA/IBGE).

Com o desempenho no vermelho, as operadoras estão pressionando os hospitais que, por sua vez, pressionam fabricantes e distribuidores de materiais e medicamentos e, assim, sucessivamente. No fim da cadeia, o que se vê é um plano de saúde depreciado.

A Anahp, associação que representa 130 grandes hospitais, reclama que o índice de glosas (quando a operadora posterga o pagamento por divergências) aumentou de 3,86 para 4,67, nos últimos três anos. “Das glosas, 75% são administrativas, ou seja, faltou algum carimbo, papel etc. O prazo de pagamento subiu cinco dias para 75 dias. Assim, as operadoras vão fazendo fluxo de caixa”, disse Antonio Britto, presidente da Anahp.

Uma argumentação parecida é da Abraid, entidade que representa fabricantes e distribuidores de materiais e medicamentos. “Há muita pressão de hospitais e operadoras. Nosso prazo médio de recebimento é de 116 dias. Cerca de 23% do faturamento do setor, o equivalente a R$ 2,1 bilhões, fica represado porque temos dificuldade para emitir a nota fiscal mesmo entregando a mercadoria e o procedimento ter sido realizado”, diz seu presidente Sérgio Rocha.

Questionada sobre a mudança na rede prestadora dos planos de saúde e aumento de glosas, a Abramge, associação das operadoras de planos de saúde, informou que “há uma regulação da ANS com critérios claros e objetivos que deve ser seguida. Já em relação às glosas, essa é uma ferramenta de gestão que deve ser utilizada para apurar caso a caso, sendo uma relação individual entre as empresas e fornecedoras”.

A agência reguladora pontuou que está analisando o atual cenário. “Estamos acompanhando a situação do setor, mas ainda não é possível saber se esse patamar de sinistralidade vai se manter para tomar decisões mais radicais”, diz Paulo Rebello, presidente da ANS.

Rebello argumenta que, no começo da pandemia, houve forte pressão das operadoras para liberar os ativos garantidores (reservas exigidas pela agência para cobrir passivos em caso de falência), mas essa medida não se mostrou necessária, uma vez que, em 2020, as operadoras tiveram ganhos recordes porque boa parte da população, cumprindo as regras de isolamento impostas pela pandemia, deixou de ir aos médicos.

No terceiro trimestre de 2022, a taxa de sinistralidade (indicador que mede o uso do plano de saúde) ficou em 93% – percentual recorde. “Ainda há muita incerteza sobre o setor. Sob um olhar otimista, em dois anos, pode haver uma normalização no volume de procedimentos médicos. Mas sob um ponto de vista pessimista, temos os impactos do rol exemplificativo, da PEC da enfermagem e tributação que ainda não conseguimos mensurar com exatidão porque dependem de decisões de outras instâncias, do governo”, diz Luis Fernando Joaquim, sócio líder da área de saúde da Deloitte.

Há incerteza sobre como fica o setor em 2023. As operadoras aplicaram um reajuste médio de 11% (com alguns casos, chegando a 22%) em planos empresariais com contratos vencidos entre dezembro e fevereiro. A expectativa é que se mantenha um aumento de dois dígitos ao longo do ano. A dúvida é se os usuários e empresas contratantes do benefício conseguem arcar com esse patamar de reajuste ao mesmo tempo em que a sinistralidade continua elevada.

Com a rede credenciada do convênio perdendo qualidade, há pacientes voltando a usar o pronto socorro para realizar consultas. Além disso, há suspeitas de fraudes de reembolso por parte de usuários e clínicas ligadas a terapias do espectro autista.

Fonte: Valor Econômico

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