ARACAJU/SE, 21 de maio de 2024 , 6:30:02

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Setor aéreo é um dos mais judicializados do Brasil

 

Um cenário mais conflituoso entre o setor aéreo e os consumidores no Brasil preocupa reguladores, empresas e governo. A chamada judicialização tem sido apontada, entre outros fatores, como uma barreira e afugentado operadores, em especial os “low cost” (de baixo custo) – modelo que caiu no gosto dos viajantes ao redor do mundo, mas que não tem conseguido deslanchar no país.

O Brasil passou a ser mais viável ao setor global após o governo, então de Michel Temer, aumentar de 20% para 100% o limite de capital estrangeiro das aéreas a operar no mercado doméstico. Entre as empresas a sondar o Brasil estão a argentina Flybondi e a JetSmart, mas os planos andam de lado ante ameaças aos seus modelos de negócio, entre as principais delas está o alto número de processos.

O setor bateu picos de reclamação durante a pandemia em meio a um ambiente mais tumultuado, com cancelamentos, brigas pelo uso de máscara e atrasos. Mas o pós-pandemia não fez os ânimos se acalmarem totalmente. Segundo dados da plataforma Consumidor.gov compilados pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), foram 33 reclamações a cada 100 mil passageiros no mercado doméstico em 2019, número que bateu o pico de 123,7 em 2021. Em 2023, foram 71,3 reclamações, mais que o dobro de 2019.

Ao Valor, Mauricio Sana, CEO da Flybondi, disse que a aérea de “low cost” tem visto uma boa evolução nos seus voos internacionais para o Brasil. “Nosso objetivo é entrar no mercado interno brasileiro. Mas enfrentamos desafios específicos relacionados ao ambiente regulatório brasileiro que impactam diretamente nosso modelo de negócios”, disse.

De um lado, o consumidor tem demonstrado muito interesse na operação “low cost”. Entre os principais protagonistas do modelo está a Ryanair, na Europa. Acontece que estas operações acabam usando de mecanismos pouco populares aqui. Um deles, e que é protagonista de disputas até hoje, é o formato de cobrança de bagagem.

Por aqui, a cobrança da bagagem despachada de 25 kg em 2017 foi uma ampla briga. Mas consumidores afirmam que o bilhete não ficou mais barato com a medida, uma promessa que chegou a ser feita pelo então ministro de Transportes Maurício Quintella Lessa. O setor argumenta que o cenário de transporte aéreo é outro, com custos mais elevados, como o combustível.

E o segmento “low cost” vai ainda mais longe lá fora ao cobrar pela bagagem de 10 kg que é levada nas cabines. Na Argentina, a gratuidade é de bagagem até 6 kg. “É falso que todos os passageiros de todos os voos tenham de transportar bagagem”, disse Sana, defendendo a opção de deixar o cliente escolher e pagar pelo que vai usar.

Ricardo Catanant, diretor da Anac, destacou que a preocupação do órgão regulador no tema é garantir a atratividade do mercado. “São as condições de concorrência e o quanto isso não influi de forma perversa no custo das empresas e se reverte para o consumidor”.

Mas Catanant destacou que os pleitos das aéreas, sobretudo as de “low cost”, vão além da judicialização. Um dos temas proposto hoje pelas companhias é a revisão das regras de assistência. As empresas defendem que ida ao hotel ante o cancelamento de voo, por exemplo, poderia vir de uma solução de mercado, como um seguro. “É um tema que a gente vai ter de se debruçar, sim. Mas não sei o resultado”, disse.

A própria regulação 400 da Anac, que traz as regras para a operação de passageiros, teve o processo de revisão atrasado pela pandemia. Atualmente, passa por avaliação regulatória, ainda sem prazo para desfecho.

O diretor executivo do Procon-SP, Luiz Orsatti, ponderou que a judicialização mais elevada não é um fenômeno apenas do setor aéreo, e que está presente também em áreas como telecomunicações e saúde. Mas no lado das aéreas, um dos maiores entraves hoje nos tribunais é o conflito entre o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA).

Um exemplo é o direito de arrependimento, em que pelo CDC é de sete dias para compras online, enquanto o CBA é de 24 horas, levando a brigas nos tribunais. “É um mercado de fato importante, sobretudo em um pais de dimensões continentais como o Brasil. O transporte aéreo poderia ser menos caro, mais efetivo, mais eficiente. Podemos estar nesse caminho, mas estamos distante desse resultado”, disse.

Na média, o Procon-SP registra entre 600 e 800 reclamações ao mês contra o setor. O pico ocorreu em 2022, quando apenas em janeiro daquele ano foram 4.072 reclamações, parte significativa ligada à crise da plataforma Hurb, de venda de passagens.

Ricardo Bernardi, consultor jurídico da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata), destacou que o que se quer não é proibir o consumidor de buscar reparo por algum serviço mal prestado, mas destacar o quão fora da curva o Brasil estaria.

“Um dos maiores problemas de processo é o atraso, mas duas das três aéreas nacionais figuraram no ranking das 10 mais pontuais do mundo em 2023”, disse Bernardi, em referência aos dados da plataforma OAG. Latam e Azul foram segunda e terceira no ranking, respectivamente.

Bernardi acrescentou que a facilidade de se vencer um processo ao alegar dano moral sem comprovação seria um chamariz para a judicialização.

A Lei 14.034 de 2020 alterou pontos do CBA sobre o chamado dano moral presumido. Com a mudança, caberia ao consumidor comprovar de fato o dano diante de um atraso ou cancelamento de voo. Mas no Judiciário o desfecho tem sido outro.

“A ausência de uniformidade na aplicação do direito brasileiro, mesmo diante de legislações específicas, tem gerado uma distorção sem precedentes no mercado nacional”, disse José Ricardo Botelho, CEO da Associação Latino-Americana e do Caribe de Transporte Aéreo (Alta).

Há ainda críticas a plataformas que mediam as disputas contra aéreas por incentivarem os processos – as chamadas lawtechs, que argumentam que se o setor fizer um bom trabalho ele não será processado.

O debate acerca da necessidade de mais concorrência e de atrair “low costs” tem ganhado corpo diante das sinalizações da Azul de avançar com a consolidação com a Gol. Na contramão de atrair mais companhias, o número de processos chegou até a provocar cortes na oferta doméstica de assentos para o Norte, conforme mostrou reportagem do Valor.

A Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) calcula que Gol, Latam e Azul precisam provisionar cerca de R$ 1 bilhão ao ano para lidar com processos judiciais. “Essa prática onera não somente as empresas aéreas, mas também o consumidor”, disse Jurema Monteiro, presidente da associação.

Segundo levantamento conjunto do setor, apontado por Monteiro, em 2023 foram registradas 243 mil ações judiciais contra as empresas aéreas no Brasil, o que representa crescimento de 30% em relação aos 186 mil processos de 2022. Em 2016, eram 36 mil.

A Latam disse que atualmente o seu braço no Brasil representa quase 50% da operação de todo o grupo, mas responde por mais de 98% dos processos. Segundo a empresa, houve alta de quase 33% no número de ações judiciais no Brasil de 2022 para 2023, mesmo com bons indicadores operacionais.

A Azul disse que os reflexos do elevado número de processos vão da alta dos custos e das passagens, à redução da oferta de voos e podem chegar até a inviabilidade econômica das empresas. A Gol disse que se manifestaria pela Abear.

Fonte: Valor Econômico

 

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