ARACAJU/SE, 28 de abril de 2024 , 13:37:19

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A Escola do Recife

Se alguém parar pra pensar e se perguntar onde estão sendo geradas, neste momento, as ideias que renovarão o pensamento nacional, provavelmente, a resposta será diluída em diversos locais, em variados núcleos de excelência. Do mesmo modo, se for indagado quem são os maiores pensadores sociais brasileiros da atualidade, a resposta será dispersa. A quantidade de nomes citados será imensa e pouco consensual. Algumas universidades e centros de pesquisa constarão da primeira resposta, alguns professores da segunda. Mas, provavelmente, nenhuma instituição, ou grupo de pensadores reunidos, será havido como ponto focal da produção de um pensamento consistente, com algum grau de homogeneidade e capaz de mudar os destinos do país.

No século XIX foi diferente. Esses locais existiram. O Brasil estava nascendo como nação independente e a gênese dos cursos de direito e medicina, produziu uma forte concentração da elite intelectual brasileira nas localidades em que sediados. Os cursos jurídicos, baseados em Olinda (depois, Recife) e São Paulo, de modo particular, por sua proximidade imediata com os temas sociais, criaram as bases da formação do pensamento brasileiro nos territórios da filosofia, do direito, da economia, da crítica literária, da sociologia e das demais ciências sociais.

Das duas faculdades, pretende-se aqui destacar uma como centro de visceral renovação intelectual. A Faculdade de Direito do Recife, estabelecida em 11 de agosto de 1827, e instalada, no ano seguinte, como Faculdade de Direito de Olinda, nasceu da necessidade de formar uma elite jurídica e intelectual no Brasil recém-independente. Transferida para o Recife, em 1854, tornou-se um polo de produção no campo jurídico e político, influenciando significativamente a construção do Estado brasileiro, ao tempo em que também gerou interpretações do Brasil de então, capazes de produzirem reflexões acerca da identidade nacional, que emergira – ou começara a emergir – há poucos anos. O abolicionismo, o republicanismo, a busca da laicidade estatal, dentre outros temas potentes daqueles idos, têm imensa dívida com essa faculdade.

No coração dessa metamorfose, dessa passagem do momento colonial para o de Brasil soberano, inclusive nas ideias, estava a Escola do Recife, um movimento intelectual que marcou profundamente o desenvolvimento da inteligência jurídica, política e cultural no Brasil. Sendo impossível falar de todas, fiquem registradas as figuras de Tobias Barreto (1839-1889), Sílvio Romero (1851-1914) e Clóvis Beviláqua (1859-1944), que foram protagonistas desse movimento, cada um deixando um legado único e duradouro.

Tobias Barreto, maior de todos os filósofos brasileiros, liderou a Escola introduzindo, com ressalvas e ajustes, conceitos do positivismo e cientificismo no pensamento jurídico brasileiro, como reação ao formalismo arraigado e ao jusnaturalismo empedernido que dominavam as obras da época. Ele desafiou as concepções jurídicas tradicionais, propondo uma abordagem que considerava o homem como produto de um processo cultural. Esta perspectiva representou uma ruptura com o determinismo social e influenciou a interpretação e aplicação do Direito no Brasil, dando ênfase à cultura e à realidade social. Menos abstração e mais apego à facticidade. Seu peso é tão grande que a Faculdade de Direito, hoje absorvida pela Universidade Federal de Pernambuco, é conhecida como “Casa de Tobias Barreto”.

Sílvio Romero, por outro lado, trouxe uma ampliação do horizonte intelectual. Suas análises críticas da literatura e cultura brasileiras, bem como suas reflexões sobre identidade nacional, ofereceram novas perspectivas sobre os desafios da sociedade brasileira. Entre outros “insights”, no meio de uma economia escravagista, para choque e mal estar de muitos de seus contemporâneos, ele viu a miscigenação como um elemento enriquecedor da cultura nacional, influenciando significativamente o pensamento de figuras como Gilberto Freyre (1900-1987), que também se formou em Recife. 

Equivocado algumas vezes, Incompreendido em muitas oportunidades, intimorato sempre, era polemista furioso, um pensador original. Dentre suas muitas contribuições, Romero publicou a primeira história da filosofia brasileira e uma obra seminal dos estudos da literatura nacional. Seus pioneiros estudos de folclore inspiraram Câmara Cascudo (1898-1986), outro egresso da Escola.

Clóvis Beviláqua, influenciado pelas ideias desse círculo recifense, foi crucial na formulação do Código Civil Brasileiro de 1916, um dos grandes monumentos jurídicos brasileiros do século XX. Como autor de seu anteprojeto, ele sintetizou as influências da Escola em um instrumento jurídico adaptado ao estágio de desenvolvimento econômico do país, superando o direito colonial, as Ordenações, que ainda vigoravam extensamente. A ordem jurídica seguia excludente, mas seus contornos liberais eram um passo mais adiantado em relação ao que antes havia.

A influência da Escola do Recife ultrapassou as fronteiras regionais, inspirando a criação e a reformulação de cursos jurídicos por todo o Brasil. O legado dessa Escola incluiu uma crítica ao formalismo jurídico e a defesa de uma interpretação do Direito mais flexível e adaptada à realidade social brasileira.

Além do impacto no direito, a Escola do Recife também influenciou diretamente a literatura brasileira. A crítica ao romantismo e a defesa de uma literatura realista e nacionalista refletiram a busca por uma identidade cultural genuinamente brasileira, abrindo caminho para a expressão de autores como Euclides da Cunha (1866-1909), com sua literatura de aspirações sociológicas.

Em resumo, a Escola do Recife não foi apenas um grupo de pensadores jurídicos; foi uma força motriz na modernização do pensamento brasileiro. Obviamente, muitas de suas ideias estão já sobrepujadas, mas o seu legado ainda influencia o direito, a sociologia, a literatura e a política no Brasil, destacando-se como um marco na história intelectual do país. 

Sílvio Romero, em particular, foi um intelectual multifacetado cujas contribuições foram fundamentais para a formação do pensamento moderno brasileiro, demonstrando a importância de sua obra na compreensão da cultura e da identidade nacional. Sobre ele ainda falaremos em próximas oportunidades.