Quando Rui Barbosa pedia a palavra o Senado Federal calava e parava para ouvir o exímio pensador, advogado, jornalista e senador baiano. Daquele discurso, quase sempre inflamado e corajoso, voltado para alertar a nação e buscando discutir os grandes temas, normalmente desaguavam lições imorredouras.
Foi do púlpito do Senado que Rui disse “Não! O Brasil não aceita a cova, que lhe estão cavando os cavadores do Tesouro, a cova onde o acabariam de roer até aos ossos os tatus-canastras da politicalha. Nada, nada disso é o Brasil”.
Evoco o águia de Haia para lembrar a importância do parlamento, a nobreza do parlamentar e para realçar algo óbvio: a escolha feita pela população brasileira de seus representantes deveria recair no que existe de melhor na sociedade e não do que dispomos de pior, como parece ser o critério das últimas legislaturas. Ao invés de pensadores, professores, profissionais liberais destacados, cientistas, representantes dos empresários, dos trabalhadores e dos vários segmentos da sociedade civil organizada, tem-se optado pela eleição de influencers digitais, gente ligada às milícias, pessoas que não possuem currículo mais folha corrida, muitos profissionais da segurança pública com o discurso de lei e ordem, lacradores e comediantes em geral.
É triste assistir o empobrecimento moral do parlamento. Acabaram os grandes debates. Raros os projetos apresentados com seriedade de propósitos ou voltados ao bem comum. Tudo é discutido à base de liberação de emendas, valendo-se do famoso “toma lá, dá cá” que sempre esteve no cerne da política brasileira de forma escamoteada e agora é feito às claras, sendo que nada mais choca a população. Normalizamos a politicalha de que falava o grande Rui e passamos a presenciar a decrepitude do parlamento que está em estado avançado de putrefação, roendo os ossos do tatu-canastra.
Pensar que nomes como Joaquim Nabuco, Gilberto Freire, Jorge Amado, Carlos Marighella, Luís Carlos Prestes, Josué de Castro, Bertha Lutz, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Luíza Erundina, Almino Afonso, Roberto Campos, Ulysses Guimarães e tantos outros brasileiros de elevada envergadura moral, intelectual e cívica foram parlamentares que dignificaram as Casas Legislativas e deixaram sua colaboração ao país, independentemente do espectro ideológico, pouco importando se de esquerda ou de direita ou se mais ou menos liberal, impacta-nos quando comparamos com a composição do parlamento das últimas legislaturas, especialmente a atual. Se ontem tínhamos homens à altura do desafio e da responsabilidade de ser fiel depositário da representação popular, hoje encontramos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal um deserto de ideias e ideais.
Se outrora o parlamento era a caixa de ressonância da sociedade, foro adequado para os grandes debates nacionais, sítio apropriado para receber todos os espectros ideológicos, amálgama dos sentimentos da nação, nos últimos anos, legislatura após legislatura, tem-se um congresso mediocrizado, apequenado, com representantes eleitos em ondas que tomam a sociedade e fazem com que pessoas totalmente despreparadas política, cultural e moralmente sejam eleitas e ostentem a honrosa condição de representante popular.
Quando a Constituição Federal estabeleceu no art. 1º, parágrafo único que todo poder emana do povo e deve ser exercido diretamente ou por intermédio de seus representantes, sacralizou a representação popular como verdadeira cláusula pétrea do estado democrático de direito, elevando a importância de possuirmos eleições livres, periódicas e com respeito à vontade soberana do eleitor, realçando a relevância do mandato no qual está investido àquele que recebe delegação para defender os interesses da população e da federação, legislando e fiscalizando os demais poderes da república.
Não imaginava o legislador constituinte que o voto popular em 35 anos de vigência da Constituição Federal seria tão banalizado e as escolhas se revelariam tão trágicas para a sociedade brasileira. Hoje são eleitos (muitas vezes com uma inexplicável quantidade de votos) pessoas sem qualquer afinidade, preparo e propósito para atuar no parlamento.
Os resultados são nefastos. Basta assistir a uma sessão da Câmara dos Deputados ou uma reunião de qualquer CPI para observar a miséria que se abate sobre o parlamento brasileiro, totalmente desacreditado, composto de integrantes que não possuem o mínimo de decoro que é sinônimo de “decência, dignidade moral, honradez, pundonor, brio, beleza moral”. (José Cretella Júnior, Comentários à Constituição de 1988).
Encontramos gente que está preocupada em lacrar com a edição de vídeos curtos postados nas redes sociais e o único objetivo de receber likes de seus seguidores fieis, alguns estão no parlamento para lucrar e enriquecer com a política e outros sequer sabem o que fazer em uma casa de leis. É o Congresso Nacional o mais democrático e transparente dos três poderes da república. Transformaram o lugar da discussão por excelência, verdadeira caixa de ressonância dos anseios da sociedade em um programa de humor trash, ridicularizando os temas mais sérios e relevantes.
É triste perceber o deserto de ideias que assola as casas legislativas brasileiras. Profundamente lamentável assistir deputados e senadores defendendo golpe de estado ou a ditadura militar (que normalmente tem como um de seus objetivos fechar ou manietar o parlamento), verificar nas sessões das comissões das casas a participação de deputados que fazem daquele espaço nobre da política um verdadeiro picadeiro, usando perucas e outros assessórios, imitando trejeitos, fazendo gestos que lembram a supremacia branca americana, utilizando-se de palavras de baixo calão, enfim, transformando o sagrado palco do debate dos grandes temas da nação em um lodaçal onde chafurdam sem perceber que estão a um só tempo apequenando um dos poderes da república, emasculando a democracia e minimizando a importância do voto popular.
É desolador constatar que do local onde deveriam ser discutidos com profundidade todos os projetos de lei voltados a aperfeiçoar a sociedade, regrar a vida pacífica de nosso povo, viabilizar o combate às desigualdades e a toda forma de preconceito, surgem leis as mais estapafúrdias e injustificáveis, demonstrando as graves consequências das escolhas de representantes desqualificados e descompromissados com a verdadeira missão que deve nortear a representação popular.
Projetos de lei criando o dia do Saci e o dia do Samurai, declarando que os ventos devem ser considerados patrimônio da União, para que o estado possa receber royalties a partir da geração de energia eólica, estabelecendo que noivos sejam obrigados a plantar 10 mudas de árvores ao se casarem e 25 mudas caso se separem, proibindo nomes próprios em animais domésticos, fixando que a venda de antisséptico bucal somente pode ocorrer com receita médica ou proibindo lutas marciais na TV, são exemplos da banalização do espaço nobre do parlamento.
É preciso resgatar a boa política, urge que a representação popular seja encarada com seriedade, que os eleitos façam jus ao mandato outorgado pelas urnas, que o voto não seja utilizado como local de protestos pueris que custam muito caro à sociedade, que a política seja um espaço reservado para as pessoas com vocação, que possuam verdadeiro amor ao país, elevado espírito público e consciência da importância de representar o concidadão.
Oxalá possamos, depois da deblace, voltar a nos erguer politicamente, enviando ao parlamento pessoas que não precisem ouvir os sábios conselhos de Rui Barbosa que usou a tribuna do Senado em 17 de dezembro de 1917 para vaticinar: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.