ARACAJU/SE, 2 de dezembro de 2024 , 6:55:59

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A rescisória e seus dois julgamentos

Vladimir Souza Carvalho

vladimirsc@trf5.jus.br – magistrado

A rescisória é a única ação que comporta dois julgamentos em uma só decisão. Está no art. 974/CPC: Julgando procedente o pedido [primeiro decisório], o tribunal rescindirá a decisão, proferira, se for o caso, novo julgamento [segundo] (…). Esta a regra geral, observando-se, por ser forçoso, só se aplicar quando a rescisória, inicialmente, é julgada procedente, revelando-se madura a questão para admitir, de logo, outro julgamento [o segundo]. Fora daí, não há lugar para o segundo julgamento. O primeiro, é meramente formal, na verificação de ter ou não verificado uma das situações descritas nos oito incisos do art. 966.

Todo o cuidado é pouco para, no primeiro decisório, não transformar a rescisória em recurso de apelação. Este, o mal corrente, pela força do canto da sereia a iludir o julgador assumindo o controle de sua mão, conduzindo a pena para a apreciação do mérito em si, no que apodera-se do espaço reservado exclusivamente ao segundo julgamento. O primeiro, limita-se a pesquisa   de ter o julgado rescindendo ofendido a coisa julgada [inc. IV] ou violado manifestamente a norma [inc. V], casos, aliás, mais rotineiros. Não interessa, na apreciação do mérito da ação ordinária, – cujo julgado se busca rescindir, – a sua conclusão em termos meramente de mérito. Apenas se um dos motivos, estampados nos oito incisos do art. 966 se faz presente. A verificação inicial se traduz em uma indagação: ocorreu ou não violação a coisa julgada? Ou sucedeu ou não afronta manifesta a norma? Só.

Iterativo que o terreno, reservado ao julgador, no primeiro julgamento, contém uma limitação de motivos, o que diminui o seu espaço de atuação, que, afinal, se equilibra em autêntica corda, não podendo pisar em outra área, sob pena de, sem nenhuma cerimônia, desvirtuar a rescisória,  para decidi-la como se fosse uma segunda via recursal. Não há como esquecer a imposição da norma, no mencionado art. 974, da exigência de dois julgamentos. Daí não ser concebível pousar no segundo sem ter enfrentado e ultrapassado a primeira etapa. A formalidade faz parte do jogo, circunstância a exigir um quê a mais na redação da inicial da rescisória e, igualmente e principalmente, no voto proferido, até mesmo para ficar bem diferenciada esta da ação ordinária. Inexequível atracar no segundo julgamento sem transpor o primeiro julgamento. Todas as portas se fecham para tanto.

Destarte, verificada a pertinência formal da rescisória, julgando, inicialmente, procedente, por notória constatação da ocorrência de um dos motivos das matérias alojadas nos oito incisos do art. 966, parte-se nesta ocasião para o segundo julgamento, atento a advertência cravada no art. 974, isto é, se for o caso, e, sendo, abre-se a cancela para novo julgamento, o segundo, e, por conseguinte, o relator da rescisória se entraja das vestes de julgador para imergir no mérito da ação ordinária – não é mais o da rescisória, que ficou para trás, como a casca que a cigarra se desfaz porque já tem nova casca -, valendo-se das peças que o autor e o réu trazem em suas manifestações. No segundo julgamento não há mais limites, o horizonte é amplo, o julgador vagueia por onde deseja e imprescindível se faça, não há muros a estorvar sua perambulação, e, em consequência, restaura a situação factual para decidir o mérito da ação primeva, por força da pertinência da rescisória no seu primeiro julgamento.

Se não for o caso de julgar de logo, a solução é determinar o retorno dos autos da ação originária para novo julgamento, quer pelo juiz de primeiro grau, quer pela turma julgadora do segundo grau.

Esta, a visão, ainda que panorâmica, da rescisória a possibilitar dois julgamentos em um só decisório, a teor do art. 974.

Enfim, há duas outras modalidades de sentença na rescisória. Uma, quando a inicial é indeferida [§3º, do art. 968], outra, quando é julgada improcedente, a dar vazão a declaração implícita de que não há como seguir adiante, a impertinência  da rescisória ergue muros, fecha portas, exclui qualquer espaço para adentrar no segundo julgamento, que, aliás, já não se faz devido, salvo a tentativa de levar a discussão e o inconformismo da parte autora às instâncias especiais, via de recursos especial e extraordinário, o que simboliza, se cabível, para decisão futura, a cargo do juízo que prolatou o último decisório, circunstância que, pelo menos, por algum tempo, a decisão final fica em suspenso.

Da mesma forma que cachaça não é água, na velha marcha carnavalesca, a rescisória não é, em seu todo, recurso de apelação, com a característica ímpar e intransferível de exigir do relator dois julgamentos em um só voto, recomendando-se-lhe o máximo de atenção para não se deixar carrear pelo farol do apelo.