ARACAJU/SE, 2 de dezembro de 2024 , 6:40:47

logoajn1

Apologia ao decreto que faz papel de lei

Parece fora de propósito, para não dizer de ousadia, depois de vinte e cinco anos de vigência, afirmar que a Lei 9.605/1998, apesar de dispor sobre as infrações penais e administrativas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, não cataloga nenhuma infração administrativa ambiental, o mesmo não se proclamando com relação às infrações penais, no que se revela abundante, na catalogação das infrações contra a fauna, flora, outros crimes contra o meio ambiente, contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural e a administração ambiental. Um saco bem sortido de infrações penais ambientais.

De pobreza com relação à infração administrativa ambiental, apenas um dispositivo, o art. 70: Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, goze, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente. Só. É um verdadeiro cheque em branco que se concede a administração para, ante qualquer conduta  que não tenha sido adotada como crime ambiental, coroa-la com o carimbo de infração administrativa ambiental. É poder em demasia, nas mãos de fiscais muitas vezes despreparados para qualificar o fato.

A administração fixou os olhos no Decreto 6.514, de 2008, que, por seu turno, se arvorou da condição de norma e, então, corajosamente, passou a declinar as infrações administrativas ambientais, a começar pelas cometidas contra a fauna, flora, relativas à poluição e outras infrações ambientais, contra o ordenamento e o patrimônio urbano e patrimônio cultural, a administração ambiental, e, enfim, cometidas exclusivamente em unidades de conservação. O pecado de nascimento continua: decreto não é lei, nem pode fazer o papel de lei. Decreto se reserva o papel de regulamentar a lei, não de ser lei.

Na prática, os autos de infração – tomo por base os muitos recursos que passam pela minha relatoria – se calcam no art. 70, que citam, alguns, e a maioria, no Decreto 6.514, como se este fosse lei, não observando que a Lei 9.605 delegou ao Poder Executivo, art. 75,  a tarefa única reservada ao decreto de fixação do valor da multa, e, assim, mesmo cimentando o mínimo de cinquenta reais e o máximo de cinquenta milhões. No mais, anunciou que o Poder Executivo a regulamentaria em noventa dias, o que não ocorreu. O Decreto 6.514 é de 22 de julho de 2008, dez anos atrasado.

Então, é nos dispositivos do Decreto 6.514 que os autos de infração se calcam, independentemente de, no frontispício, citar as sanções da Lei 9.605. Já na fixação das multas, apesar da delegação já mencionada, não observa que a Lei 9.605 fixa, entre as penalidades, várias sanções, começando pela advertência, indo depois para a multa simples, a multa diária, a apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração, destruição ou inutilização do produto, suspensão de venda e fabricação do produto, embargo de obra ou atividade, demolição parcial ou total de atividades, e, finalmente, restritiva de direitos, tem-se passado em branco o alerta do só se aplicar a multa simples por negligência ou dolo, advertido, continuar praticando a infração, ou opuser embaraço a fiscalização dos órgãos do Sisnama ou da Capitania dos Portos ou, por fim, do Ministério da Marinha.  Nos autos, não se observa nenhum dos alertas da Lei 9.605. São requisitos a serem cumpridos para aterrissar na multa simples. Reclama-se justificação, que nunca é dada.

No frigir dos ovos, a ampla redação do art. 70, por si só, não é suficiente para carimbar nenhuma conduta como infração administrativa ambiental. Cheque em branco não se passa. Ninguém é tão parvo assim. A obrigação do Poder Executivo regulamentar a Lei 9.605 em noventa dias a partir da publicação, não se concretou, só o fazendo dez anos empós.

Então, com o atraso, o Poder Executivo criou coragem, e gerou o Decreto 6.514 a especificar, uma por uma, as infrações administrativas ambientais, como a dizer que se o Legislativo não as detalhou, o Executivo o fazia, operando o terrível milagre de transformar o decreto em lei, como vem sendo encarado e aplicado, bastando cotejar os autos de infração lavrados pelos entes federais que cuidam do meio ambiente.

Ao admitir, como vem ocorrendo, embora implicitamente, poder o decreto desempenhar o papel de lei, é de ser alterada a redação do inc. II, do art. 5º, da Constituição, para acrescentar que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei e também do decreto. E ainda o inc. IV, do art. 84, para, entre os poderes privativos da Presidência da República, além de sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução, incorporar o de expedir decreto com força de lei.

É o que se teme, para não piorar mais ainda.