Em agosto de 2017 na cidade de Montes Claros, interior de Minas Gerais, uma mãe solteira com três filhos pequenos para criar, premida pelo desespero e por uma necessidade extrema, adentrou nas Lojas Americanas e furtou 04 pacotes de fraldas descartáveis avaliados em R$ 120,00 reais.
Presa em flagrante, passou a responder a um processo criminal, sendo acusada do crime de furto (art. 155, do Código Penal), não obstante o valor insignificante do objeto subtraído, consequência de uma exclusão cada vez mais gritante e de uma miséria que arranca das pessoas nacos de dignidade, impedindo-as de terem o mínimo existencial. Lamentavelmente o exemplo de prisões por furtos de gêneros alimentícios ou objetos com valores insignificantes (lata de leite em pó, pacote de margarina, biscoitos, sabonetes, etc.) ocorre todos os dias em nosso país,
Ao ser nomeada para apresentar a defesa da acusada, a defensoria pública arguiu como principal tese jurídica para buscar a absolvição desta mãe aflita que passou a sentar no banco dos réus como alguém perigoso à sociedade, o irretocável argumento de que mínima non curat preator e, diante da insignificância do bem subtraído, especialmente considerando o estado de miserabilidade da acusada e a capacidade econômica da vítima, suplicou a defesa pela incidência do princípio da insignificância como excludente da tipicidade (crime de bagatela).
Os argumentos da defesa não foram ouvidos e a ré foi condenada a uma pena de 1 ano e 2 meses de reclusão a ser executada no regime semiaberto. A imposição de uma decisão condenatória está fundamentada no argumento de que se tratava de acusada reincidente de crime específico (é sempre muito fácil condenar uma mulher desemparada, que vive em situação de indigência e em um ato extremo comete pequenos delitos para sustentar seus filhos, crianças que também foram abandonadas pelo Estado, pelo pai biológico e pela sociedade). A defesa ingressou com recursos que foram negados perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e pelo Superior Tribunal de Justiça. No entendimento desses juízes que atuaram no feito em três instâncias, o lugar dessa mãe de três crianças com idades entre 10 e 5 anos é no cárcere, cumprindo pena.
Não basta humilhar, aviltar e tratar de forma subumana essa mãe, é preciso colocá-la na cadeia, afastando-a de seus filhos, criando uma situação de ainda mais vulnerabilidade social, conspurcando a Constituição Federal, diversos tratados de direitos humanos que o Brasil é signatário e toda a moderna doutrina penal.
Ainda inconformada com gritante injustiça, a defensoria pública bateu às portas da Suprema Corte, último degrau da jurisdição brasileira, impetrando um habeas corpus, para pedir que princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, legalidade (fragmentariedade do direito penal), cidadania, proporcionalidade, ampla defesa, dentre outros, fossem restabelecidos, rogando pelo trancamento da ação penal diante de sua conduta insignificante (tem-se tipicidade puramente formal, mas não material, considerando a ausência de lesão ao bem jurídico tutelado no crime contra o patrimônio).
Para surpresa da comunidade jurídica o pedido de habeas corpus foi denegado pelo STF (HC 225.706/MG), afirmando o Ministro André Mendonça, aquele cujo ex-presidente Bolsonaro indicou para compor a Corte Constitucional por ser terrivelmente evangélico, que em razão de ser a ré reincidente na prática de crimes contra o patrimônio, afastava a utilização do princípio da insignificância. Pelo visto, referido julgador está se revelando terrivelmente punitivista.
Apegou-se o ministro relator a uma jurisprudência deserta de qualquer sopro de humanismo e manteve a condenação (alterou apenas o regime de cumprimento da pena para o aberto) de uma mãe solo, única responsável pela alimentação e criação de três crianças em tenra idade, que sobrevive de auxílios do governo, desempregada e que enfrenta toda sorte de privações e humilhações diárias.
O ato de julgar é também um ato de humanismo. É preciso muitas vezes decidir não somente com amparo nos códigos e nos entendimentos jurisprudenciais, mas também com sentimento. A busca por uma decisão justa é sempre uma meta que não se atinge com a aplicação fria e burocrática da lei.
O juiz não é um homem de lata, célebre personagem da obra “O mágico de Oz” de L. Frank Baum cujo sonho era possuir um coração. Deve ser de carne e osso e, como tal, não se limita a burocraticamente aplicar a lei, como um robô, sem se importar com as consequências de seus atos, despido de qualquer consciência social.
Cabe um registro de que o mesmo Supremo Tribunal Federal que mantém a pena de prisão a uma mãe desesperada que furta fraldas descartáveis das Lojas Americanas é o que assegura o respeito à privacidade e à imagem dos três controladores de referida empresa, mesmo havendo suspeita da prática de um rombo contábil que pode ultrapassar 50 bilhões, lesando o sistema financeiro nacional, todos os acionistas minoritários, empregados e credores.
A mesma Suprema Corte que enxerga o respeito às garantais dos controladores das Americanas, não consegue vislumbrar a insignificância na conduta imputada a desgraçada mãe que queria proteger seus filhos. Essa constatação torna evidente a atualidade da frase cunhada pelo escritor Fernando Sabino ao afirmar que “Para os pobres é dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei. Para os ricos, é dura lex, sed latex. A lei é dura, mas estica”.
O mesmo Estado-Juiz quase sempre leniente com quem pratica sonegação fiscal, lavagem de capitais, evasão de divisas, crimes societários e outros ilícitos contra o sistema financeiro e a ordem econômica e tributária é invariavelmente cruel, perseguidor e implacável com os autores de pequenos furtos e outros crimes contra o patrimônio, quase sempre praticados por pessoas em situação de fragilidade econômica e social, vítimas de um sistema exclusivo que constrói diariamente uma sociedade de párias.
É preciso humanizar as decisões judiciais, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, assegurando que garantias constitucionais saiam efetivamente do papel e ganhem eficácia. Por menos juízes com coração de lata e mais julgadores com compaixão, piedade e benevolência, aptos a escutarem e praticarem o que falou o grande escritor português José Saramago em seu discurso proferido ao receber o prêmio Nobel de literatura, comentando as injustiças sociais crescentes no mundo em que vivemos, vaticinando de forma poética: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia”.
Que os corações dos juízes sangrem todos os dias e que a justiça seja plena, efetiva e humana.